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Os Miseráveis e os estudos criminais de Victor Hugo


Por Iverson Kech Ferreira


Cento e cinquenta e quatro anos após sua primeira publicação, a obra do francês Victor Hugo, Os Miseráveis, já ganhou musicais e interpretações no cinema, seriados e até mesmo revistas em quadrinhos.  É impossível negar a afirmação de que a obra pode ser considerada uma das mais importantes, atraentes e pujantemente cunhada num viés social destacado, o que viria a se tornar o epiteto dos condenados do mundo. Para Victor Hugo enxergar os miseráveis de sua época não foi difícil, todavia, seu status social e sua inclinação politica, que o levou ao exílio vivendo em diferentes realidades, ainda que engajado na política frequentemente, não tivera contato direto com os reclames dos oprimidos por fome e pela miséria francesa no reino do Rei Filipe I, não fosse por uma peculiaridade nos estudos do autor.

O diferencial de Hugo foi temperado por uma essência que o autor houvera capturado em um lugar para ele antes inusitado: a colônia penal de Toulon. Foi no ano de 1824, contando apenas 22 anos de vida, que o autor dos Trabalhadores do Mar e o famoso Corcunda de Notre Dame embrenhou-se nas mazelas e na escuridão do mundo da penalização, da fobia e do terrível enclausuramento. Nesse ambiente suas pesquisas trouxeram a vida não mais que um personagem excelente, mas também as sequelas que o próprio autor imaginava que tal sujeito lá preso teria após sua liberdade. Hugo assim criou Jean Valjean: de dentro de um dos mais atrozes presídios da França.

Todavia, o propósito era o de criar uma perfeita realidade, que Hugo imaginava ser incapaz de realizar sem antes conviver com o que havia idealizado. Assim, aproximando-se dos trabalhos de Charles Dickens na Inglaterra o autor destaca a imensidão de corpos que cambaleiam de um lado a outro em busca de sobrevivência, numa luta emblemática pelo salvo-conduto dentro da sua própria realidade. A descrição da pobreza latente, das injustiças, a conturbada formação social francesa pós-revolução revela, a paupérrima sobrevida nas ruelas de certas castas negligenciadas pela maioria e pelo Estado, mas que também possui em seu cerne o seguro conceito de sobrevivência, contra tudo e contra todos.

Os estudos na colônia Toulon trouxeram a vida o estigmatizado Jean Valjean, que por ter roubado um pão para auxiliar a própria sobrinha, é capturado e sua sentença a ser cumprida imediatamente fora cinco anos de trabalhos para a Nação. Não aceitando e após muitas injustiças e sofrimentos, Valjean tenta, sem sucesso, outra sorte, afastando-se da sua pena tentando fugir. Mais quinze anos somaram-se ao seu desatino. A realidade com que Hugo traz o personagem beira incrivelmente, ou se não, alcança de fato, a perfeição.

Não é pretensão desta breve análise resumir ou estudar obra tão complexa, qualquer síntese a respeito da obra de Hugo em tão poucas páginas pode ser considerada leviana de fato.

Todavia, o seu personagem, quiçá principal testemunha das injustiças do sistema punitivo e sua ascensão como protagonista no roteiro se deve aos estudos realizados pelo escritor, na vida real, no interior de um dos mais conhecidos presídios da França de sua época.

Após ter iniciado seus estudos finalmente, em 1837, Hugo adentra a colônia penal de Toulon.

Tal prisão era conhecida por fornecer mão de obra, ou, trabalho forçado nas galés, onde os condenados, com os pés atados serviam como remadores de navios e grandes embarcações.  Lá, ao analisar os motivos da permanência ou entrada de certas pessoas no sistema carcerário, certamente analisou injustiças, histórias diversas e muita precariedade, pois foi assim que descreveu os calabouços, tanto físicos como psíquicos de Valjean.

O que se nota em tal obra, refletindo a realidade de suas palavras, era que em épocas como a descrita, na França de Filipe I, os condenados de quaisquer espécies, mesmo os loucos, os insanos, os mentalmente enfermos, doentes psíquicos dividiam espaço com assassinos natos, com ladrões e usurpadores, que por sua vez, partilhavam com tantos outros Jeans Valjeans a morada fatal. Nessa mesma toada muitos furtadores de um pão para manter a vida se condicionavam em conjunto a todos os outros e a junção dessas histórias de vida e experiências criavam um novo ser, uma síntese fabricada pela dor e pela desgraça.

Não é assombroso nem deveria ser o aspecto de um condenado após vinte longos anos de serviço prestado à justiça assemelhar-se ao de um monstro recém saído de um pântano qualquer. E é essa a referencia ou a descrição do herói de Os Miseráveis que o próprio Victor Hugo não abre mão de fazer.

Os estudos realizados pelo autor em uma colônia penal muito se assemelham com outros estudos no mesmo âmbito, em semelhante local, todavia, com outro enfoque: o de interpretar o perfil criminoso e criar um molde da personalidade, tendo como inspiração o físico daqueles que encarcerados estavam.

As técnicas de antropometria aplicada de Cesare Lombroso em um universo único tinham como intuito combater a criminalidade, identificando criminosos de acordo com suas características físicas. Maior problema de Lombroso foi a escolha de um local onde apenas estavam presentes (em seu universo de estudos aplicado) prisioneiros criminosos. Destarte, a dualidade presos/criminosos era sempre configurada pelos integrantes da prisão, não havendo o molde do “homem comum” em que pudesse basear seus estudos. O crescente Eurocentrismo da época de Lombroso identificava-se com seu trabalho entusiasmando certas alas da ciência médica, psíquica e do campo jurídico.

Tais estudos deixaram claro que para Lombroso o criminoso descrito em seu trabalho intitulado como Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinquente, que identifica o atavismo como causa do crime, bem como, detalha o criminoso nato sendo aquele irrecuperável que retorna sempre ao mesmo ponto, o crime, é facilmente identificável. Todavia, não identificava as estruturas socais de seu tempo, a crescente marginalização e distinção das raças, o crescimento da miscigenação e o ápice colonialista europeu que dominava o mundo com sua mão branca.

Por outro lado, em épocas quase semelhantes, a impressionante visão social de Victor Hugo ficaria demonstrada em Os Miseráveis, onde apresenta o submundo das prostitutas, dos mendigos, enfim, dos bestializados e esquecidos por uma elite que dominava cada vez mais o oficio das máquinas e da crescente industrialização, banalizando o trabalho, o cidadão e sua sobrevivência.

A responsabilidade de Hugo foi muito além: demonstrou em uma época dominada pela força de um Estado tirano que o estigma vai adiante daquele ensejado por Lombroso. Ao deixar a prisão e sem conseguir ter como sobreviver, Valjean parte a um novo crime. Todavia, por todos os lugares em que passava, teria que mostrar seu único documento que atestava sua liberdade condicional, devido a uma latente periculosidade. Entretanto, não fosse somente isso, some-se aos anos passados e sofridos nas galés onde muitas pessoas esvaneciam doentes, transformando a figura do homem, deixando-o mais amargo e mais animal em sua aparência, a mesma que já fora um dia a de um homem. Este estigma perdura.

Somente uma nova chance salvaria o herói de Victor Hugo, e ela, chegou apenas com seu suspiro final.

Por outro lado, inúmeras são as fases da estigmatização que identificavam o protagonista, de uma forma que, mesmo depois de sua vitória pessoal como homem de negócios, ocupando cargo especial em Paris, sendo grande empresário e tendo vários funcionários, essa marca perdura e não desaparece, nem com o tempo ela desvanece mas gruda como alcunha, simbolizando sempre o seu crime passado.

Hugo demonstra uma preocupação com isso também, transformando a batalha entre dois homens, uma perseguição insensata pelas ruas de Paris que deflagraria em uma tragédia final: a síntese entre o bem e o mal sempre irá ser composta com a morte, não há em Hugo um meio termo, um meio bom ou um meio mal.

Diante a tantos estigmas, injustiças e caos social nota-se o estudo realizado na colônia penal de Toulon, onde percebeu as lacunas do sistema prisional, que de toda forma, tinha a pretensa aptidão em captar mão de obra barata, jovem e estigmatizada para servir ás suas galés, foi a mais importante reflexão de Hugo sobre a criminologia e o poder punitivo do Estado de seu tempo.

Não é possível deixar de citar o prefácio de Os Miseráveis, que coaduna com toda a nossa sociedade em dias do cotidiano, que demonstra a nossa franca e funesta involução:

“ENQUANTO, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização de verdadeiros infernos, e desvirtuando por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.” (Victor Hugo, Os Miseráveis, 1862) 


REFERÊNCIAS

HUGO, Victor. Os Miseráveis, 1862. Tradução Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2015.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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