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Os paradoxos da concessão de graça pelo Presidente da República

Os paradoxos da concessão de graça pelo Presidente da República

Ricardo Jacobsen Gloeckner[1]

A condenação pelo Supremo Tribunal Federal do deputado Daniel Silveira por crimes atentatórios à democracia foi imediatamente rebatida por um ato insólito do Presidente da República, Jair Bolsonaro. Após a condenação, mas ainda assim mesmo antes do trânsito em julgado da decisão, o Presidente da República publica decreto de graça, extinguindo a punibilidade do agente político.

Sem adentrar no mérito da decisão condenatória, resta saber se o decreto é válido. Várias razões apontam no sentido de que se trata de um ato que carece de validade.

1. Breve Nota Histórica Sobre o Instituto da Graça

Os institutos da graça e do indulto, não obstante a reinante confusão terminológica, não podem ser confundidos. A utilização destas categorias como sinônimos é fonte de inequívoca confusão, comprometendo inclusive uma análise mais apurada sobre a viabilidade da graça no panorama do Estado Democrático e Constitucional de Direito.

Em um primeiro lugar, deve-se compreender o instituto da graça em sentido lato como um direito de o soberano perdoar o condenado. Pode-se tratá-la como gênero cujo fundamento repousa na soberania. BECCARIA tratava do instituto como “a mais bela prerrogativa do trono”[2]. A economia da graça ou da liberalidade[3], que acabou por sair de uma teia de relações pessoais para ser acoplada aos nascentes institutos constitucionais (ou melhor, permanecendo nas raízes da formação política do Estado moderno) constitui um resquício do antigo poder taumatúrgico do monarca. A figura da graça pertence a uma economia da dádiva presente no jus commune e que passou, com o desenvolvimento do capitalismo e da ética protestante, a estar presente nas modificações que recaíram sobre o Estado, especialmente a burocracia. O constitucionalismo monárquico reconhece a graça como um destes resquícios do jus commune transferidos a uma nova formatação do Estado. HESPANHA salienta que o perdão de crimes estava umbilicalmente conectado ao direito régio e à própria figura do rei, que se deveria fazer amar mais do que ser temido[4]. Nesta relação, o direito penal formal não era a única forma de se exercer o controle social (uma vez que à deontologia do poder de reinar também se acrescia o exercício da clemência). O direito penal moderno e a concepção iluminista do poder de punir não havia se livrado completamente dos resquícios monárquicos e do absolutismo esclarecido, já que se pode dizer ter havido entrecruzamento entre o pluralismo jurídico do jus commune e o monismo legislativo que passa a caracterizar o direito moderno[5]. Mesmo como expressão do direito régio, como acentua HESPANHA, não se tratava de um poder absoluto, posto que a graça não era arbitrária, estando em franca relação com o Bem supremo. Assim, o poder do príncipe sobre a clemência é justificada não como uma violação da justiça, mas como o seu complemento[6], ou seja, como clemência suprema.

Em trabalho ímpar sobre o instituto da graça e do perdão, Monica STRONATI, ao analisar a integração destes institutos ao processo penal moderno e aos Estados constitucionais, questiona como pode ter este instituto se infiltrado nos novos regimes jurídicos modernos. Pode-se dizer que, de acordo com a autora, antes dos institutos conhecidos como substitutivos penais (como o livramento condicional, o sursis, etc), a força do perdão e da graça atuava como ferramenta moduladora das penas[7]. Por esta razão, a graça e o perdão apareciam como elementos políticos que tinham por função regular a rigidez do acertamento processual penal, tratando de rever a quantidade e a qualidade da pena. Não se pode descurar de que a graça e o perdão estão associados, ainda que não deterministicamente, a regimes de governo com poderes centralizados. Isso explica parcialmente o fato de que durante o regime fascista, na Itália, o perdão e a graça terminam por recuperar a sua função “régia” em um modelo centralizado de poder, especialmente através do protagonismo exercido pelo Duce[8].

No Brasil a matéria é pouco discutida, podendo ser referidos os trabalhos de LOPES[9] que analisa os pedidos de perdão que chegavam ao imperador, assim como o belo artigo de NUNES, RODRIGUES e BORGES sobre os pedidos de perdão elaborados pelos condenados que cumpriram pena na Penitenciária de Florianópolis entre 1935 e 1945[10]. Além disso, COSTA procede a um exame detido da graça no direito penal e na cultura jurídica brasileiros entre os anos de 1824 e 1924[11].

O Código Penal de 1890 trata no seu art. 71 da “extinção” ou “suspensão da ação penal” incluindo como causas a morte do criminoso, a anistia (de legitimidade do Congresso), o perdão do ofendido e a prescrição. O art. 72 ao tratar da condenação, afirmava que ela seria extinta pelas mesmas causas do art. 71 e mais o cumprimento da sentença, o indulto do poder competente e a reabilitação. A anistia, na lógica do código, fora tratada ora como “indulto de graça” ora como instituto diverso do “indulto de graça”, equiparado, neste caso, à comutação de penas. Na Constituição de 1891 o poder de conceder a graça seria do Presidente da República apenas nos crimes federais, ao passo que este poder, em se tratando de crimes estaduais, eram de competência dos governadores[12].

Na Constituição de 1934, o art. 56, § 3º estabelece os poderes do Presidente para “perdoar e comutar, mediante proposta dos órgãos competentes, penas criminais”. A terminologia passa a equiparar a graça ao perdão, o que significa a adoção lato sensu da expressão. Será justamente na Constituição de 1937 que esta categoria será expressamente tratada no art. 75, “f”, posteriormente reformado pela Emenda Constitucional nº 9 que elencou o mesmo poder no art. 74, “n” da carta constitucional.

Desde este aspecto, importante sinalizar alguns pontos. O Código de Processo Penal de 1941 foi elaborado durante a vigência da Constituição de 1937. A disciplina processual se encontra nos artigos 734 a 742. O disposto no atual CPP mantém até hoje praticamente a sua redação original. Nestes dispositivos, há inequívoca distinção entre graça, indulto e anistia (que serão mais adiante examinados). O procedimento da graça segue os parâmetros que foram desenvolvidos no processo italiano, uma vez que o atual CPP possui forte influência do Código de Processo Penal Italiano de 1931. Por seu turno, o Código Penal Brasileiro de 1940 (mesmo após a reforma da parte geral de 1984) trata da graça no título da extinção da punibilidade, ao lado da anistia e do indulto.

A Constituição de 1946 em seu art. 87, XIX não utiliza mais a expressão graça, mas sim retoma a “concessão de indulto” e a “comutação de penas”, com “audiência” dos órgãos instituídos em lei, ou seja, ratificando o procedimento do código de processo penal brasileiro. A mesma redação aparece na Constituição de 1967 no art. 83, XX, com uma diferença: o indulto e a comutação poderiam ser delegados pelo Presidente a Ministros de Estado. A Emenda Constitucional nº 1 de 1969 põe fim à delegação, restaurando a competência exclusiva do Presidente, suavizando a obrigatoriedade da audiência dos órgãos instituídos. Por fim, a Constituição de 1988 no art. 84, XII fala em indulto e comutação de penas, com audiência dos órgão instituídos em lei, se necessário, mantendo a estrutura da Emenda nº 01 de 1969.

2. O Instituto da Graça no Direito Brasileiro

A redação dada à concessão da graça, no código de processo penal brasileiro, está intimamente associada à sua previsão legal na forma da Constituição de 1937, a única que de forma expressa tocou na temática (as demais constituições já falaram em perdão, mas reiteradamente falam de indulto e comutação de penas). A Constituição de 1937 fala em “graça” em sentido genérico, isto é, como categoria que reúne todas as formas de clemência. Ela foi a primeira Constituição brasileira a usar esta expressão, nada referindo sobre o seu conteúdo (se se tratava de perdão em geral ou do instituto específico da graça como benesse individual[13]). Neste ponto, vale registrar que o Presidente da República, durante o Estado Novo, gozava da concentração de todas as modalidades de perdão existentes em suas mãos, o que rendia o caráter excepcionalíssimo da Constituição de 1937. Como destaca POGGETTO, tal centralização é apenas equiparável à Constituição de 1824, quando em razão do poder moderador, os poderes de clemência em geral estavam enfeixados nas mãos do imperador[14].

Seja como for, a legislação processual penal brasileira, no procedimento previsto nos artigos 734 a 742 inspirou-se na legislação italiana, em que o instituto da graça, além de provocação da parte (o código de processo penal brasileiro vai além, admitindo a sua concessão de ofício), depende da participação do Ministro da Justiça, que assume a responsabilidade política[15]. No processo italiano, desde o código de processo penal de 1865, o pedido de graça depende de manifestação e atividade da parte interessada. A exemplo do código de processo penal brasileiro, o art. 595 do CPPi de 1930 está localizado no Título denominado “Da Aplicação da Anistia, do Indulto e da Graça”, também topograficamente vinculados à Execução da Pena (em forma sistemicamente similar ao CPP brasileiro). No caso italiano o pedido de graça era dirigido ao Rei e apresentado junto ao Ministro da Justiça, devendo ser submetida pelo condenado por escrito, por um parente próximo, pelo tutor ou curador, por um advogado ou procurador. Durante o período fascista, a graça foi utilizada com a função de evitar a aplicação da pena de morte (que tinha sido reinstituída sob o governo de Mussolini) para condenados por crimes políticos, que eram processados de forma sumária[16].

O rito brasileiro previsto no Código de Processo Penal prevê, como regra, a iniciativa da propositura pelo condenado, por qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, do Ministério Público ou, ainda, podendo ser decretada de ofício pelo Presidente (art. 734). Será processada pelo Ministro da Justiça, com relatório do Conselho Penitenciário, devendo subir ao Presidente da República com todos os documentos (arts. 735 e 736). Uma vez concedida a graça, o decreto deverá ser juntado aos autos e o juiz da execução declarará extinta a pena ou a ajustará em caso de comutação (art. 738).

Com a edição da Lei 7.210/84, o tema da anistia e do indulto passam a ser tratados pelo art. 188 e seguintes deste diploma normativo. Em primeiro lugar, a lei trata do instituto com absoluta impropriedade terminológica, uma vez que fala em “indulto individual”, dando a entender que se trata do instituto da “graça”. O procedimento é praticamente mantido (devendo o Conselho Penitenciário elaborar um relatório, haver submissão ao Ministro da Justiça, com cópias dos documentos e finalmente submetida ao Presidente). Se concedida, o decreto presidencial deverá ser anexado aos autos para que o juiz declare a extinção da punibilidade (arts. 187 – 192) da LEP. Note-se que desaparece a concessão de graça de ofício. A legitimidade para a sua propositura, mediante provocação, é do próprio condenado, do Ministério Público, do Conselho Penitenciário e da autoridade administrativa (tratando-se aqui possivelmente do administrador da casa prisional). É juridicamente indiscutível que a execução penal, no Brasil, passou a ser integralmente regulada pela LEP, não se aplicando mais os dispositivos do código de processo penal que versam sobre a execução penal. A execução penal, assim, se desembaraçou do direito processual para ganhar autonomia científica. Neste sentido, pode-se afirmar que a concessão de graça de ofício desapareceu quando da entrada em vigor da Lei 7.210/84, a menos que a “autoridade administrativa” de que cuida esta norma se refira ao Presidente da República, o que conduz a uma hermenêutica forçada e absolutamente inapropriada.

Conceitualmente, a graça consiste em espécie de “clemência soberana” como afirma NORONHA[17]. Na dicção de HUNGRIA, a expressão “graça” utilizada pelo código penal brasileiro teria sido empregada em sua expressão estrita, como uma modalidade de causa extintiva da punibilidade[18]. De toda forma, prossegue acertadamente o autor, a utilização das três espécies de clemência (anistia, graça e indulto) não permite a sinonímia, ao argumento de que “não se compreende em dispositivo legal o uso de duas expressões com o mesmo sentido”[19]. Demais disso, característica essencial ao instituto é a sua ordinária solicitação pelo interessado, ao contrário do indulto que de regra é uma espécie de “graça” espontânea do poder público.

Outra importante diferença entre o indulto e a graça reside no fato de que enquanto a graça é sempre individual, o indulto será sempre coletivo. Desta maneira, enquanto a característica da graça é ser pessoal, o indulto assume a natureza impessoal[20]. Por fim, enquanto o indulto pode recair sobre acusados que ainda se encontram respondendo ao processo criminal, a graça recai apenas sobre condenados, ou seja, “a graça pressupõe a sentença definitiva” e, à diferença do indulto, destina-se a apenas um condenado[21]. Outra diferença é que a graça de regra dependeria de requerimento formulado pelo interessado, enquanto o indulto nasce do decreto editado pelo Presidente[22].

A análise da “graça” como modalidade abstrata de perdão já foi examinada diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal como nos casos do HC 77.528/SP, HC nº 90.364/MG, HC 118.213/SP, HC 103.618/RS etc. Em todos estes casos se analisava a constitucionalidade da regra que vedava aos crimes hediondos a concessão de graça ou anistia (art. 2º, I da Lei 8.072/90). O entendimento firmado foi o de que a graça seria modalidade de perdão, sendo o indulto uma espécie (indulto individual e coletivo).

Apesar de respeitarmos estas decisões, a questão merece um tratamento mais vertical. Por um lado assiste razão ao STF ao afirmar que a graça, no sentido empregado pela Lei dos Crimes Hediondos é um instituto abstrato, abrangendo as espécies indulto e graça em sentido estrito. Por outro, não parece correta a expressão “indulto individual” como sinônimo, apesar de a Lei 7.210/84 usá-la nos dispositivos em que examina esta figura. De uma maneira geral, a graça é uma espécie de clemência que pressupõe o trânsito em julgado (diversamente do indulto), que possui natureza pessoal (ao invés da impessoalidade do indulto), dirigida a apenas uma pessoa e que depende de provocação da parte interessada. Justamente o inverso do indulto. A utilização, pelo código penal, do indulto, anistia e da graça como categorias distintas indica que não se cuidam de institutos jurídicos idênticos. E aqui começam os problemas trazidos pela concessão da graça pelo atual Presidente da República ao deputado condenado.

3. O Decreto de 21 de Abril de 2022

Após a condenação, pelo STF, do Deputado Daniel Silveira, no dia 21 de Abril de 2022 o Presidente da República publicou decreto concedendo a “graça constitucional” ao acusado, fundamentando-se na prerrogativa estabelecida pelo art. 84, XII da Constituição.

3.1 Graça Antes do Trânsito em Julgado

O primeiro problema de validade do referido decreto resulta de não respeitar o trânsito em julgado da decisão condenatória. Havendo recurso possível na jurisdição brasileira, não se pode tomar como operada a coisa julgada. Portanto, como há uma diferença ontológica entre o instituto da graça e o do indulto, o ato do Presidente da República é juridicamente inexistente, uma vez que não respeita o mais comezinho requisito desta modalidade de clemência. De fato, o decreto em apreciação parece uma tentativa de concessão de um salvo-conduto pelo Presidente da República, o que evidentemente não é uma prerrogativa do chefe do Executivo, já que a análise e exame do habeas corpus é matéria jurisdicional. Muito distante, portanto, do pretendido pelo decreto. Inclusive o momento em que foi editado o decreto indica se tratar de uma tentativa de se evitar a prisão do deputado, o que lhe confere justamente a configuração de um “salvo-conduto” anômalo, potencialmente maculado pelo desvio de finalidade.

3.2 A Não Recepção do Instituto da Graça Pela Constituição de 1988

Diversos motivos impõem que se reconheça não ter mais vigência o instituto da graça em sentido estrito. Preliminarmente, o procedimento previsto no código de processo penal estava amparado na Constituição de 1937, única Constituição a usar a expressão “graça”. As demais constituições não voltaram a empregar esta expressão. Todavia, a discussão se encontra para além de uma questão essencialmente terminológica, como se verá.

3.2.1 A Revogação da Concessão do Instituto da Graça Ex Officio

A Lei 7.210/84, que entrou em vigor na mesma data da reforma da parte geral do Código Penal revogou os dispositivos sobre a execução da pena no Código de Processo Penal. Apesar de a Lei de Execuções usar a expressão “indulto individual” de forma absolutamente inapropriada, manteve praticamente todo o procedimento, com algumas alterações. Dentre elas aboliu-se a prerrogativa de o Presidente concedê-la de ofício em seu art. 188. Desta forma, o decreto editado de ofício não atende à forma do art. 188 da Lei 7.210/84, sendo defeito que torna o ato jurídico presidencial inexistente.

3.2.2 Incompatibilidade Entre o Instituto da Graça Estrito Sensu e a Democracia Constitucional

De uma forma geral, a sobrevivência do instituto da graça como clemência individual nos ordenamentos jurídicos caracterizados pelo monismo legislativo estaria condicionada à sua capacidade de “complementar” o ordenamento jurídico[23]. Segundo Arturo ROCCO, sendo o processo penal um puro acertamento técnico, previsto como metodológica aplicação da lei sobre o caso em concreto (uma concepção tecnicista de direito), o espaço para uma decisão carregada de subjetividade não estaria em consonância com a técnica exigida para o acertamento do caso penal. Desta maneira, este juízo de equidade não mais seria viável no processo penal surgido a partir da modernidade. A graça adviria de uma manifestação de caráter pessoal, conexa à opinião pública e à necessidade política e social do momento[24]. Assim, sendo ato político por excelência, a graça integraria o juízo de equidade ao técnico. Assim, ao lado de uma decisão regida pela aplicação do direito segundos os cânones hermenêuticos advindos da modernidade, a graça serviria para rever uma decisão que, apesar de formalmente correta, não atenderia critérios de justiça. A graça desempenhou uma função absolutamente ordinária no século XVIII[25], o que pode ser explicado pela fase transicional vivida pelo direito penal que passava do modelo do Antigo Regime ao Estado Moderno. Contudo, com o advento das democracias constitucionais, a graça passa a ser compreendida como excepcionalíssima, perdendo todo o seu vigor.

Um modelo constitucional de tripartição de poderes em uma democracia de tipo parlamentar consiste em um regime de governo cujo poder é disseminado entre distintos órgãos. Portanto, embora não seja a única finalidade, uma democracia constitucional parlamentar tende a suavizar a concentração de poderes nas mãos do Poder Executivo. Assim, a hipótese de que há incompatibilidade entre as democracias constitucionais e o instituto da graça em sentido estrito[26] deve ser levada a sério. A história corrobora o fato de que os regimes autoritários sempre encontraram maneiras de concentrar poderes nas mãos de um órgão ou pessoa. Demais disso, um dos primeiros passos levados a cabo por um regime de tipo autoritário é subordinar o judiciário aos seus interesses. Que a graça tenha encontrado maior expressão no período monárquico e do Estado Novo no Brasil, no período fascista, na Itália, não deve causar estranheza.

As democracias constitucionais, como espaços em que o poder é distribuído entre os diversos órgãos sujeitos ao controle e fiscalização mútua, impedem a interferência direta de uns poderes sobre os outros. Aliás, a mutabilidade da coisa julgada pretendida pelo decreto presidencial em comento se afeiçoa a verdadeiros regimes de exceção, em que é lícito ao chefe de Estado conceder benefícios aos seus amigos e partidários, e o rigor da lei aos seus antagonistas. Trata-se do Estado de dupla legalidade tão bem analisado por Ernst Fraenkel[27].

Há flagrante incompatibilidade entre um instituto que possui claras origens monárquicas e que vai sobrevivendo ao longo das constituições brasileiras, especialmente pela precária conceitualização que lhe fora dada pela doutrina. A concessão de privilégios pessoais é justamente um dos episódios contra os quais se insurgiu o povo na Revolução Francesa. Representa uma economia da dádiva por certo inadmissível em uma democracia, na qual a legalidade e a impessoalidade dos atos praticados por seus agentes públicos são condições essenciais.

Nas democracias constitucionais, a graça como instituto de clemência pode encontrar sobrevida apenas nas decisões oriundas do tribunal do júri (como no caso da nulificação do júri do direito norte-americano ou no caso do quesito genérico do atual júri brasileiro). Todavia, esta modalidade de clemência tem as suas razões na própria competência do tribunal do júri. Uma graça pessoalizada concedida por um agente político a sujeito individual é a antítese de um procedimento republicano e democrático.

3.2.3 O Princípio da Impessoalidade da Administração: incompatibilidade da graça como figura penal pessoal

Se as razões de legalidade que devem ser atendidas por uma república democrática por si só encontrariam razões para suspeitar-se de sua adequação, a Constituição Brasileira de 1988 estabelece em seu art. 37, caput, o princípio da impessoalidade. Com efeito, as próprias características da graça em sentido estrito estabelecem a pessoalidade como seu elemento identitário. Um decreto emitido pelo Presidente da República, que beneficie um acusado individualmente em um processo de natureza criminal pode ser tudo, menos impessoal. Há, portanto, grave vício do ato, que desde a Constituição de 1988 não possui mais vigência no direito brasileiro.

É justamente a necessidade de que decretos do Poder Executivo respeitem a impessoalidade e, portanto, não se privilegie nenhuma pessoa especificamente que o instituto da graça é, de per si, incompatível com o sistema constitucional pós-1988 (ainda que o caput do art. 37 da Constituição tenha sido efetivado através de Emenda Constitucional). Assim como não seria lícito elaborar-se um edital de concurso nominalmente dirigido a uma pessoa (por força do princípio da impessoalidade), torna-se naturalmente incompatível um instituto que despreze uma investigação, processamento e sancionamento criminais em beneplácito de um correligionário. O argumento de inaplicabilidade da impessoalidade ao instituto da graça por ser incompatível com o instituto é juridicamente fraco e imprestável. Em primeiro lugar, por ser a graça, como já referido, instituto que assume protagonismo em regimes de concentração de poder no seio do Executivo. Em segundo lugar, quando um instituto jurídico é incompatível com um regime principiológico que conduz os atos da administração pública, não se tem um regime de excepcionalidade deste instituto. Ou seja, não se pode admitir ato administrativo insuscetível de controle sobre a moralidade, eficiência, impessoalidade, etc. A única solução cabível é reconhecer que o instituto (o da graça em sentido estrito) é imprópria a um regime republicano e reconhece parâmetros principiológicos que devem conduzir os atos administrativos. Afirmar que o instituto da graça não se subordina à impessoalidade pelo fato de se cuidar de instituto pessoal é, além da demonstração de uma pobreza hermenêutica franciscana, admitir regimes de excepcionalidade jurídica. E, neste sentido, admissão da concentração de poderes nas mãos do Chefe do Executivo. As experiências do século XX já demonstraram o quão perigosos tais enfeixamentos de poder podem ser.

Uma interpretação conforme a constituição indica, inclusive, que se deve proceder à supressão do uso da graça em sentido estrito. Isso pelo fato de que quando a Constituição trata do indulto, o faz exclusivamente em sentido coletivo, não se podendo mais falar em “indulto individual” ou graça, já que o sistema de regulação da administração não pode se subordinar à perseguição de finalidades pessoais de seus agentes, como no caso do decreto do dia 21 de abril de 2022. Neste ponto, inclusive os dispositivos da LEP que tratam da graça devem ser considerados como não recepcionados pela Constituição, posto que inclusive fogem das experiências democráticas mais recentes. Pelo menos três pesquisas sobre a concessão de indultos demonstram que o instituto da graça nunca foi concedido na experiência democrática brasileira pós-1988[28].

Resta saber se este ato do Presidente pode ser configurado como crime de responsabilidade, mais especificamente o art. 12.1 e 12.2 da Lei 1079/50, tarefa que não cabe neste pequeno ensaio.

REFERÊNCIAS


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[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Pós-Doutor em Direito pela Università Federico II. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado e parecerista.

[2] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 136.

[3] A expressão será usada por HESPANHA, António Manuel. As Outras Razões da Política: a economia da “graça”. In HESPANHA, António Manuel. A Política Perdida: ordem e governo antes da modernidade. Curitiba: Juruá, 2010. p. 85 – 110.

[4] HESPANHA, António Manuel. O Amor nos Caminhos do Direito: amor e iustitia no discurso jurídico moderno. In HESPANHA, António Manuel. A Política Perdida: ordem e governo antes da modernidade. Curitiba: Juruá, 2010. p. 69.

[5] MECCARELLI, Massimo. El Proceso Penal Como Lugar de determinación de la Justicia: algunas aproximaciones teóricas de la época del ius commune. In GALÁN LORDA, Mercedes. Gubernar y Administrar Justicia: Navarra ante la incorporación a Castilla. Navarra: Aranzadi, 2012. p. 308.

[6] HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012. p. 253.

[7] STRONATI, L’eccezione che conferma la regola: grazia, potere giudiziario e circolari ministerial tra XIX e XX secolo. In COLAO, Floriana et alli. Perpetue Appendici e Codicilli Alle Leggi Italiane: le circolari
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[8] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 127-150.

[9] LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva, 2010.

[10] NUNES, Diego; RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane Trindade. O Direito de Graça e os Pedidos de Perdão: os condenados da penitenciária de Florianópolis (1935-1945). In Revista de Direito Mackenzie. v. 14. n.3, 2020. p. 1-22.

[11] COSTA, Arthur Barrêto de Almeida. Poder e Punição Através da Clemência: o direito de graça entre direito penal e constitucional na cultura jurídica brasileira (1824 – 1924). In R IGHB. a. 180. n. 481, 2019. p. 255-304.

[12] O art. 48, 6º da Constituição de 1891 atribuiu poderes ao Presidente para indultar e comutar penas.

[13] POGGETTO, João Paulo Ghiraldelli dal. Políticas Públicas e Sistema Penitenciário: análise dos decretos  de indulto desde a Constituição Federal de 1988. Dissertação em Direitos Humanos e Desenvolvimentos Social. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2021. p. 64.

[14] POGGETTO, João Paulo Ghiraldelli dal. Políticas Públicas e Sistema Penitenciário: análise dos decretos  de indulto desde a Constituição Federal de 1988. Dissertação em Direitos Humanos e Desenvolvimentos Social. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2021. p. 64.

[15] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 134 et seq.

[16] MANGINI, R; GABRIELI, F. P; COSENTINO, U. Codice di Procedura Penale: illustrato con i lavori preparatori. Roma: Tipografia della Camera dei Deputati, 1930. p. 414-415.

[17] NORONHA, Magalhães E. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 628.

[18] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. IV: arts 102-120. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 161.

[19] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. IV: arts 102-120. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 162.

[20] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. IV: arts 102-120. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p 162.

[21] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 127.

[22] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 259.

[23] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 128.

[24] ROCCO, Arturo. Amnistia, Indulto e Grazi anel Diritto Penale Moderno. In Rivista Penale. v. XLIX, 1899. p. 21.

[25] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 129.

[26] STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli Editore, 2015. p. 127.

[27] FRAENKEL, Ernst. The Dual State: a contribution to the theory of dictatorship. Clark: Lawbook, Exchange, 2010.

[28] POGGETTO, João Paulo Ghiraldelli dal. Políticas Públicas e Sistema Penitenciário: análise dos decretos  de indulto desde a Constituição Federal de 1988. Dissertação em Direitos Humanos e Desenvolvimentos Social. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2021. Cf LOPES JÚNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da; CONSOLARO, Gabriela. O Presidente Pode Conceder a Delatores Perdão da Pena Por Meio da Graça? Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-nov-24/limite-penal-presidente-perdoar-pena-delatores-meio-graca. Acesso em 23.04.2022; Cf NABOSNY, Gabriela Consolaro. O Indulto no Direito Brasileiro e a Volatilidade dos Decretos (Im)Prevista Constitucionalmente. Trabalho de Conclusão de Curso em Direito. Florianópolis: UFSC, 2017.


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