Os reflexos do Pacote Anticrime no art. 156 do Código de Processo Penal
Os reflexos do Pacote Anticrime no art. 156 do Código de Processo Penal
A inovação legislativa de 2019 com o denominado Pacote Anticrime inseriu um dispositivo no Código de Processo Penal que parecia sanar as longas discussões acerca do sistema processual penal brasileiro. Esse dispositivo foi direto ao afirmar que é com Sistema Acusatório que o Brasil procede a persecutio criminis.
O art. 3º-A, além de dirimir as vastas discussões doutrinárias acerca dessa questão, cumpriu complementar o sentido dessa alteração, considerando “vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Apesar de parecer uma simples afirmação, é evidente que um Código de Processo Penal redigido há muitas décadas e, mesmo já tendo passado por reformas legislativas, apresentaria desafios à coerência da legislação processual penal brasileira já vigente com essa nova determinação legal que, como supramencionado, não deixa margem para muitas interpretações.
Considerando que as discussões acerca da classificação do sistema penal atribuída à legislação brasileira ainda não encontravam unanimidade e, quando encontrou maioria, esta sustentou a tese de tratar-se de um sistema processual penal misto, ou seja, os estudiosos do processo criminal identificaram na legislação dispositivos legais e aplicações jurisprudenciais que mesclavam a natureza inquisitória e a natureza acusatória do processo.
Com isso, não é difícil perceber que os demais dispositivos não alterados pela Lei n. 13.964/19 apresentam caráter que mais se aproximam do sistema inquisitório bem como também podem aproximar-se da estrutura acusatória.
Inicialmente, cabe diferenciar as duas estruturas. O sistema inquisitório é caracterizado pela aglutinação de funções da figura do juiz, que se apresenta como verdadeiro dono da persecução penal, justamente porque as atribuições de poderes instrutórios recaem apenas sobre ele.
O que se observa nesse sistema é a ausência de estrutura dialética ou de contraditório, já que o juiz tem o escopo de produzir provas, instruir o julgamento e concluir com a sentença por ele mesmo proferida. Além disso, não é característico desse sistema inquisitório a garantia à publicidade, ou seja, o julgador pode estruturar todo o processo sem a ciência das partes, o que, por sua vez, acaba por tornar o acusado um mero objeto de verificação.
Por outro lado, o sistema acusatório guarda a clara distinção entre a função de acusar e julgar, proporcionando, também, a imparcialidade do juiz. A iniciativa probatória somente concerne às partes, ao passo que também é garantida a publicidade dos atos e o direito ao contraditório.
Em âmbito mundial, é possível observar que até o século XII, era predominante o sistema acusatório, sendo que não se falava em processos sem acusador legítimo e idôneo. Contudo, há uma gradativa transição para o sistema inquisitório ao longo do século XII até o XIV, com a conhecida instalação do Tribunal da Santa Inquisição no século XIII, momento considerado sombrio na História da humanidade, em que se buscava reprimir atos que eram considerados heresia e, por isso, marcou a Idade Média.
Nesse sentido, ao considerar que o processo penal é um sistema que deve encontrar coerência, insta identificar alguns dispositivos em plena vigência no Código de Processo Penal Brasileiro que destoam da novatio legis que fixou como acusatório o sistema processual penal. A primeira diz respeito ao art. 156 do Codex, in verbis:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
O artigo expressamente versa sobre a admissão de atuação de ofício do juiz em produção probatória, apresentando, com isso, um elemento inquisitório, no qual o juiz detém a discricionariedade de instrução processual.
Considerando que as partes estão sendo representadas por patronos que detêm o conhecimento processual e probatório para assim proceder, em um sistema acusatório não haveria motivos para viger a possibilidade do juiz reconhecer, sem provocação, a urgência e relevância de provas não suscitadas pelas partes.
É possível, no entanto, vislumbrar a compatibilidade do inciso II, já que se atrela à necessidade do livre convencimento do juízo. Isto é, se o juiz ainda se vê coberto por dúvidas que possam comprometer sua atuação, é razoável que este proceda à elucidação desse ponto.
Insta ressaltar que, mesmo antes da inovação trazida pela inserção do art. 3º-A, já era possível inferir que a política estatal vigente, materializada pelo constituinte originário da Constituição Federal de 1988, já anunciava a estrutura acusatória, já que prevê a delineada divisão de atribuições processuais de acusação, defesa e julgamento, bem como prevê a estrutura de investigação pautada na legalidade e do processo pautado no contraditório, ampla defesa e imparcialidade do juiz.
Nesse sentido, é imperioso o reconhecimento dos demais dispositivos que podem sofrer reflexos com as alterações legislativas trazidas pelo chamado Pacote Anticrime que, por ora, encontra sobrestado no dispositivo aqui avaliado por concessão de Liminar na Medida Cautelar nas ADI’s n. 6.298, 6.299 e 6.305 pelo Min. Luiz Fux, a fim de dirimir possíveis contradições que possam gerar insegurança jurídica.
REFERÊNCIAS
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: Crítica à teoria geral processual penal. Rio de janeiro: Renovar, 2001.
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