Os riscos de lavagem de dinheiro em face da transação imobiliária com criptomoedas
Os riscos de lavagem de dinheiro em face da transação imobiliária com criptomoedas
Por Alexandre Morais da Rosa, Felipe Navas Próspero e Felipe Socha Cordeiro
Este ensaio tem como objeto uma breve análise acerca da possibilidade e validade jurídica de transações imobiliárias com criptomoedas, em que estas são utilizadas como forma de pagamento na aquisição de bens imóveis em face da possível configuração do crime de lavagem de dinheiro por não serem os ativos declarados.
Inicialmente, apresenta-se um panorama do Bitcoin, seu surgimento como primeira criptomoeda, objetivos e resultados alcançados até o momento, bem como uma breve introdução da tecnologia blockchain, responsável por garantir a segurança às transações com criptomoedas.
Após, trata-se da classificação das criptomoedas, analisando sua natureza e o tratamento dispensado pela Receita Federal do Brasil e o Banco Central. A seguir, enfoca-se nos desafios atinentes aos criptoativos, como sua volatilidade, segurança e utilização para fins ilícitos, buscando trazer soluções para mitigar estes riscos. Por fim, analisa-se as possibilidades de efetivação das transações imobiliárias com criptoativos de duas formas, a compra e venda e a permuta, para, ao final, eleger o meio mais adequado para a formalização destes negócios, mitigando-se os riscos de lavagem de dinheiro.
1. Bitcoin: a primeira criptomoeda
As primeiras moedas digitais datam do início dos anos 90, quando diversos entusiastas de tecnologia, denominados cypherpunks, buscaram desenvolver uma tecnologia em que se pudesse transacionar valores anonimamente, sem a necessidade de uma autoridade central que compunha o sistema financeiro oficial. Até o lançamento do bitcoin, em 2009, entretanto, não havia uma solução para o principal problema do dinheiro virtual, o gasto duplo.
Ou seja, evitar que o mesmo dinheiro pudesse ser gasto duas vezes. Isto ocorria justamente pela inexistência de protocolos seguros de validação das transações sem que houvesse a interferência de uma autoridade central, justamente aquilo que os cypherpunks queriam retirar do processo. Isso porque a garantia Estatal do meio negociado era o padrão de realização de transações, mediante a confiança no Estado ou ente garantidor.
O bitcoin, desenvolvido por Satoshi Nakamoto – cuja identidade real até hoje permanece desconhecida – se propôs a resolver este dilema adotando uma solução descentralizada. Nas palavras de Nakamoto no whitepaper do bitcoin, este se caracteriza por”uma moeda virtual como uma cadeia de assinaturas digitais. Cada proprietário transfere a moeda para o próximo por uma assinatura digital de hash da transação anterior e a chave pública do próximo proprietário e o adiciona ao final da moeda. Um beneficiário (ou terceiro interessado) pode verificar as assinaturas para verificar a cadeia de propriedades”.
Essa transparência e possibilidade de auditoria por qualquer pessoa interessada é um dos fatores que traz confiabilidade nas transações, visto que o protocolo de confiança é constantemente verificado pela própria comunidade que faz uso das criptomoedas, dispensando de forma segura a figura do terceiro garantidor.
O fato de não necessitar de um intermediário, entretanto, é o que causa uma série de desconfianças na sua utilização, na medida que a autoridade central foi substituída por uma tecnologia denominada blockchain, cuja incumbência é justamente a de validar as transações por meio de uma rede de colaboradores que recebem uma fração de bitcoins por cada transação concluída.
Caso queira entender um pouco mais sobre o blockchain, sugerimos ler aqui (MORAIS DA ROSA, Alexandre; NAVAS PRÓSPERO, Felipe. Qual a validade jurídica dos documentos pela rede blockchain? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 2019. Disponível aqui).
2. Classificação das criptomoedas pela Receita Federal
Fixadas as premissas relacionadas à segurança das transações e pagamentos com criptomoedas, em que as partes envolvidas possuem uma ferramenta garantidora (blockchain) independente de uma autoridade central, cujo objetivo é a prevenção de fraudes. Isso porque, a transação, após confirmada, não pode ser desfeita. Cabe, assim, aprofundar a classificação das criptomoedas para, então, entender a utilização destas no mercado imobiliário.
Desde o ano de 2014, quem possui qualquer criptomoeda em sua posse, tem obrigação de declará-las em seu IRPF (Imposto de Renda). A Receita Federal, desde aquele ano, entende que as criptomoedas devem constar na declaração na aba “outros bens” uma vez que “podem ser equiparadas a um ativo financeiro”. Daí que a transação com agentes sem que as criptomoedas estejam regularmente declaradas pode implicar, em tese, em investigação por lavagem de dinheiro.
A mais recente regulamentação formal daquele órgão sobre o tema, adveio da Instrução Normativa 1.888/2019, que “disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB)”.
A normativa trouxe diversos conceitos que ajudam a responder o questionamento acerca da classificação jurídica das criptomoedas, iniciando-se por conceituá-las (art. 5º, inciso II), e tornando obrigatória a prestação de informações sobre compra e venda, permuta, doação, dação em pagamento, dentre outras (art. 6, §1º).
Com a normativa, a Receita Federal reconheceu expressamente a possibilidade de negociação das criptomoedas nas modalidades expressas em seu texto, sendo que, para o tema trazido à discussão, é importante destacar a compra e venda e a permuta, visto que são as principais formas de pagamento utilizadas no mercado imobiliário.
Após a apresentação acima, é possível concluir que, para a Receita Federal, as criptomoedas são um bem móvel, incorpóreo, pois não possui representação física, além de passível de negociação mediante compra e venda e permuta. Estas características estão longe de determinar a natureza jurídica das criptomoedas sob a ótica da Receita Federal, mas são suficientes para entendermos que, a depender do seu uso, poderá ser classificada de formas distintas, embora descartada completamente a sua natureza de moeda.
3. Negociação imobiliária com criptomoedas: compra e venda ou permuta?
De modo geral, o regime jurídico seja na compra e venda, seja na permuta, é eminentemente de direito privado, muito embora alguns reflexos na seara pública podem ser verificados, à exemplo de questões tributárias e relacionadas ao registro imobiliário. Assim, as negociações com criptomoedas devem ser analisadas à luz do princípio da legalidade (Art. 5, II, CR/88), bem como das disposições previstas na legislação civil.
Nesse cenário, imperioso frisar que as relações jurídicas privadas são regidas pelo princípio da autonomia privada, desde que respeitadas as condições previstas no art. 104 do Código Civil: i) agente capaz; ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e. iii) forma prescrita ou não vedada em lei.
Ou seja, para que um negócio jurídico cumpra com requisito da validade é necessário que, além da capacidade de todas as partes do negócio jurídico, requisito que não demanda maiores aprofundamentos, o objeto seja lícito, possível ou determinado/determinável e que a forma seja prescrita ou não proibida pela lei.
O requisito da licitude do objeto se verifica, mais uma vez, pela ausência de legislação que proíba a utilização de criptomoedas no território nacional, além das normativas dos órgãos governamentais que as tratam como ativos financeiros (RFB), atribuindo-lhes valor estimado ou estimável (dólar ou real), bem como os meios de conversão para a moeda oficial (IN. 1888/19/RFB), tornando-o determinado ou determinável.
Quanto à forma, a permuta (troca) se mostra a alternativa mais acertada para este tipo de negociação, em detrimento do contrato de compra e venda, visto algumas características deste último serem incompatíveis com a classificação das criptomoedas. O art. 481 do Código Civil dispõe que “pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.
Ou seja, um dos requisitos da compra e venda é que “deve ser pago em dinheiro, ou expressão fiduciária correspondente (nota promissória, cheque etc.)” (NERY JÚNIOR et al, 2011, p. 594). Em não sendo a criptomoeda dinheiro ou expressão fiduciária correspondente, um dos requisitos para a celebração do contrato de compra e venda não resta preenchido, o que, de acordo com o artigo 104, III, do Código Civil, torna o negócio jurídico inválido, ante o não preenchimento da forma prescrita em lei.
De outro modo, ao analisar o art. 533 do Código Civil, que disciplina o contrato de permuta (troca), denota-se que esta se opera entre dois bens, excetuando-se, por óbvio, o dinheiro, uma vez que este é inerente à compra e venda. Neste sentido “são passíveis de troca coisa fungíveis por infungíveis. Bens incorpóreos também podem ser objeto de permuta, assimilada a cessão de direitos à compra e venda” (VENOSA, 2010, p. 550).
Diante da conclusão de que, para a Receita Federal, as criptomoedas são bens móveis, incorpóreos e passíveis de negociação por permuta, a utilização deste tipo de contrato como forma de negociação imobiliária utilizando estes ativos é a que melhor se enquadra nas previsões legais sobre o tema, desde que presentes cláusulas protetivas para ambos os contratantes, visando mitigar os riscos da negociação, que são bastante semelhantes ao de qualquer transação da espécie. Mesmo assim, a preocupação de que as criptomoedas estejam devidamente declaradas mitiga o risco de possível lavagem de dinheiro.
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