Os tipos penais abertos na Lei de Crimes Ambientais e sua duvidosa constitucionalidade
Os tipos penais abertos na Lei de Crimes Ambientais e sua duvidosa constitucionalidade
Como se sabe, por imposição do princípio da legalidade, ou da reserva legal (art. 1°, CP e art. 5º, inciso XXXIX, CF/88), a norma penal deve descrever em sua completude e de forma hígida os caracteres que compõe a conduta permissiva.
Tal premissa encontra-se intrinsecamente ligada ao exercício de defesa, pois como se defender de uma acusação vaga, imprecisa e genérica?
O acusado não pode ser tratado como Josef K., da célebre obra de Kafka, “O Processo”. Há que se assegurar o pleno conhecimento dos fatos imputados, como elemento fundante do due process of law (art. 5°, LIV, CF).
Nada obstante o argumento despendido, nos recorda Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas (2006) que, em se tratando do chamado Direito Penal do Ambiente, isto nem sempre é possível, haja vista as condutas lesivas ao meio ambiente não permitirem, em sua maioria, uma descrição direta e objetiva.
Neste caminhar, utilizou o legislador em demasia dos tipos penais abertos, que, nas palavras de Rogério Sanches (2018),
são tipos incompletos, que demandam do intérprete um esforço complementar para situar o seu alcance.
O maior exemplo de tipo penal aberto contemplado na Lei 9.605/98 é o art. 54, da referida Lei, que tipifica a conduta de:
causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
Luiz Régis Prado (2019), versando sobre o delito em exame, sustenta que:
o tipo legal é extremamente amplo e vago, com cláusulas normativas, de cunho valorativo, que estão muito aquém das exigências do princípio da legalidade em sua vertente taxatividade-determinação da lei penal.
Com efeito, expressões como “qualquer natureza”, “níveis tais” e “destruição significativa”, afrontam à legalidade penal, dado sua vagueza e elasticidade.
Não por outro motivo, Marcelo Leonardo (2002), adverte que “nas definições dos crimes ambientais o legislador usou e abusou da inserção de “elementos normativos do tipo”, exagerou no emprego de “normas penais em branco”, pendentes de complementação por “leis”, “regulamentos”, “normas”, “ato administrativo”, “decisão judicial”, “permissão”, “licença”, “autorização”, “parecer”, “registro”, “proibição”, além da utilização reiterada de conceitos imprecisos e fluídos, tais como “espécie rara”, “ato de abuso”, “recursos alternativos”, “dano indireto”, “especial preservação”, “níveis tais”, “destruição significativa”, “imprópria para ocupação humana” e “obrigação de relevante interesse ambiental”.
Há quem sustente a utilização e a imprescindibilidade dos tipos penais abertos na Lei de Crimes Ambientais, sendo estes ”encarados de forma protetiva, não deixando que os ofensores se esquivem de eventuais punições” (ver por outros: SOUZA, Lucas Daniel Ferreira de. Elementos que envolvem os crimes ambientais).
Com a devida vênia, não nos parece ser esta a concepção mais acertada.
O louvável escopo protetor dos bens difusos não pode servir como um “manto” intransponível ao legislador, na edição de tipos penais de duvidosa constitucionalidade.
É preciso ter em mente, que os princípios no Direito Penal, são verdadeiros “soldados de reserva” na luta contra os arbítrios estatais. Não podem estes, serem relegados, abrindo-se margem para decisionismos exacerbados, contemplando, pois, tipos penais que agradem de “gregos” a “troianos”.
Na lição lapidar de Igor Luis Pereira e Silva (2019), o princípio da legalidade é de suma importância para o Direito Penal, pois ele delimita o direito de punir (ius puniendi) do Estado, garantindo a liberdade do ser humano e os valores democráticos, tendo sido considerado a verdadeira pedra angular do Estado de Direito. A pena é uma sanção extremamente rigorosa, devendo apenas ser aplicada como consequência da prática de crimes.
E só existirá crime se houver uma lei penal prevendo taxativamente que uma determinada conduta é criminosa. Não basta a existência do crime, para que alguém sofra as consequências da responsabilidade criminal, porque é preciso ainda que a lei preveja uma sanção penal. Não há crime sem pena (Kein Ver-brechen ohne Strafe). Esse é o raciocínio extraído do brocardo jurídico nullum crimen, nulla poena sine lege, cuja formulação latina foi cunhada por Feuerbach, estando previsto nos artigos 5º, XXXIX, da nossa atual Constituição, e 1º, do Código Penal.
Dessarte, com Claus Roxin (2008), relembramos que
um Estado de Direito deve proteger o indivíduo não somente por meio do Direito Penal, mas também do Direito Penal. Quer-se dizer que o ordenamento jurídico não deve dispor somente de métodos e meios adequados para a prevenção do delito, mas também precisa impor limites ao emprego do poder punitivo, para que o cidadão não fique desprotegido e a mercê de uma intervenção arbitrária ou excessiva do Estado Leviatã.
Sendo esse o contexto, a nosso sentir, os tipos penais demasiadamente abertos são substancialmente inconstitucionais, uma vez que restringem o pleno exercício da ampla defesa, fulminando, pois, o devido processo legal (art. 5°, LIV, da CF).
REFERÊNCIAS
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Especial, 10ª Edição, Salvador: Ed. JusPodivm, 2018
FREITAS, Vladmir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza: (de acordo com a Lei 9.605/98). 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: crimes ambientais (Lei 9.605/1998). 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, t. 1. 2. ed. Madrid: Civitas, 2008.
SILVA, Igor Luis Pereira e. Princípios penais. 2. ed. rev., ampl., atual.– Belo Horizonte: Fórum, 2020
SOUZA, Lucas Daniel Ferreira de. Elementos que envolvem os crimes ambientais. Revista de Informação Legislativa. Ano 51 Número 201 jan./mar. 2014.
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