Os tribunais e a interceptação das comunicações de dados
Por Dayane Fanti Tangerino
Na semana passada levantamos a discussão acerca da Resolução nº 217/2016 do CNJ e o debate doutrinário que diz respeito a intercepção de comunicações de dados frente às disposições do inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal e dos artigos 1º, parágrafo único e 10, da Lei 9.296/1996, concluindo que a referida normativa, ao acrescentar dispositivos à Resolução 59 de 2008, uniformizando o procedimento de interceptação de comunicação telefônica, de informática e telemática nos órgãos do Poder Judiciário, ratificou a posição do CNJ de equiparar voz e dados para fins de autorização de interceptação judicial.
Tal constatação nos levou a concluir que, para tal órgão, a posição mais adequada no que se refere à intercepção de comunicações é aquela que entende que da mesma forma que ocorre com a interceptação das comunicações telefônicas, seria possível a interceptação das comunicações de dados, com todas as ressalvas legais, o que não obstante não venha sendo observado por alguns órgãos do Judiciário pátrio, continua sendo a regra, encerrando o debate.
Porém, ao final do artigo, ressalvamos que para podermos concluir com mais segurança se o debate apresentado já se faz superado, seria necessário analisar as decisões judiciais e eventual formação jurisprudencial sobre o tema nas Cortes Superiores e nos Tribunais Federais e Estaduais, análise esta que propusemos fazer na coluna de hoje e ao qual passaremos agora.
Para a análise jurisprudencial proposta limitamos as buscas aos seguintes órgãos: Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal da 2ª e 3ª Regiões e Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo e do Rio Grande do Sul.
A priori, da análise feita nos acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, fato também verificado na pesquisa realizada nas decisões do Tribunal de Justiça Paulista, constatamos que é corriqueiro nas operações policiais – relatadas em sede de inquérito policial e ratificadas em Juízo – a violação dos dados dos investigados, já que o policial, ao abordar o cidadão simplesmente se apossa do aparelho celular do indivíduo e acessa suas mensagens eletrônicas, em especial aquelas do aplicativo WhatsApp, utilizando, por vezes, o conteúdo de tais conversas eletrônicas para infligir a restrição de liberdade ao indivíduo e sua condução ao distrito policial. Vejamos alguns excertos:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. Paciente preso preventivamente pela prática, em tese, do crime de tráfico de substância entorpecente. Existência material do crime comprovada e presentes indicativos suficientes de autoria. Por ocasião do fato delituoso o paciente foi surpreendido pela polícia, após informações de estaria em atitude suspeita, trazendo em seu poder três porções de maconha e dinheiro. Apreendido na oportunidade, também na posse do paciente, um aparelho celular em que teriam sido encontradas fotografias de porções de maconha e mensagens via WhatsApp, tratando do comércio da droga. ORDEM DENEGADA. (Habeas Corpus Nº 70067076869, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Victor Luiz Barcellos Lima, Julgado em 26/11/2015)
Assim, verifica-se que, não obstante as instruções das Resoluções do CNJ sejam claras quanto à necessidade de observação das regras constitucionais para o acesso aos dados e comunicações telemáticas ou informáticas, nos tribunais de justiça referida determinação tem sido relegada a segundo plano, ocorrendo situações, por exemplo, como vemos no julgado do TJSP (HC 2016372-34.2016.8.26.0000, 13ª Câmara de Direito Criminal, 17/03/2016, Relator: De Paula Santos) no qual o policial militar responsável pela prisão do Paciente declara que, arbitraria e ilegalmente, “verificou o aparelho celular” do pretenso traficante, tendo acessado e lido, sem maiores pudores as conversas de WhatsApp por ele realizadas, tendo, inclusive, efetuado a prisão do Paciente – que pretensamente adquirira as substâncias – em virtude do teor das referidas conversas lidas no aplicativo, sendo que o assustador de tudo isso é que, no Habeas Corpus em qual o Paciente pleiteia sua soltura, nem o advogado do impetrante levantou tal questão nem o Tribunal se ateve a ela, sendo que o HC – que sequer abordou a questão – não obstante tenha comprovado que o Paciente era primário, com bons antecedentes, ocupação lícita e residência fixa, fora negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Também no âmbito da Justiça Federal é possível encontrar decisões que desrespeitam totalmente as normas constitucionais e a Resolução do CNJ. Em sede de HC impetrado junto ao TRF-2 (HC 0011445-95.2015.4.02.0000. Turma Especial, 18/11/2015, Relator: Abel Gomes) para apuração de suposta prática de tráfico internacional de armas, comércio ilegal de armas de fogo e munições, tráfico de drogas e formação de organização criminosa, aparece no depoimento dos policiais que conversas de WhatsApp foram alvo de acesso não autorizado, tendo corroborado para a prisão dos indivíduos, sendo que no acórdão analisado, apesar de tal fato, a exemplo dos tribunais estaduais ter passado desapercebido por todos, a ordem fora concedida por outros fundamentos (excesso de prazo).
Como modelo contrário ao até aqui apresentado temos o julgado do TRF da 3ª Região (HC 62411-SP, 5ª Turma, 22/06/2015, Relator: André Nekatschalow) que, nos termos da Constituição Federal, determina que o acesso aos dados do aplicativo WhatsApp seja realizado através de decisão judicial, ou seja, corroborando o entendimento de que é possível o acesso à comunicação dos dados virtuais e eletrônicos do mesmo modo que ocorre com a comunicação telefônica.
No STJ, por sua vez, encontramos julgado (RHC 59866-SC, 6ª Turma, 08/09/2015, Relator Ministro Nefi Cordeiro) que indica prisão realizada com base no conteúdo das conversas de WhatsApp – agregadas a outros elementos de convencimento –, sendo que, mesmo nesta Corte, o fato de o acesso a tais conteúdos ter ocorrido sem a observância das prescrições constitucionais não fora objeto de análise.
Por fim, no STF não há ainda casos envolvendo violação ou quebra de sigilo da comunicação de dados, fato este que demonstra a ausência de embate dos advogados (como defensores) e mesmo do Ministério Público (como fiscal da lei) nos graus inferiores acerca desta relevante questão que, como vimos, apesar de aparecer a todo momento nos julgamentos dos tribunais estaduais e federais não fora ainda levada à análise do STF, não obstante verse sobre questão constitucional fundamental, afeta aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
Da análise, portanto, ainda que superficial, podemos concluir que: (i) nos órgãos judiciais, na maioria das vezes, nem a determinação constitucional nem a normativa do CNJ tem sido observadas no que se refere ao acesso à comunicação de dados dos cidadãos e (ii) quando são observadas, entendem pela possibilidade de intercepção de comunicações de dados de forma equiparada à interceptação das comunicações telefônicas.
De tudo fica a conclusão já imaginada: apesar de haver previsão constitucional, normativa regulamentar inferior e debate doutrinário intenso sobre o tema – intercepção de comunicações de dados –, no cotidiano das ruas e dos Fóruns as garantias e liberdades das pessoas são violadas sem o menor pudor e, a exemplo do que temos visto acontecer recentemente, inclusive tendo-se como vítimas indivíduos do mais alto escalão do Poder nacional, os órgãos julgadores e também os advogados, por vezes, pecam na defesa e no julgamento das causas que versam sobre os valores mais essenciais ao ser humano, dentre os quais a liberdade. E é por isso que temos que nos manter vigilantes e atuantes em tempos conturbados, mas também em tempos que parecem ser os mais tranquilos, já que é na calada da noite e no seio da democracia, ou seja, nos momentos em que relaxamos e acreditamos que as coisas estão evoluindo é que vemos acontecer as maiores violações de direitos.