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A outra volta do parafuso e a possível psicose litigante

Assustadora à sua maneira e singularmente charmosa como somente uma obra de Henry James poderia ser, ‘A outra volta do parafuso’, de 1898, retrata bem os pavores das antigas mansões e o que escondem suas paredes. Para isso, a fidelidade para com a dúvida e a ambiguidade é levada até o fim pelo escritor.

Como se uma história dentro da própria história fosse contada, Henry James relata uma jovem governanta que tem a missão de cuidar de duas crianças órfãs, mas que sempre viveram com os antigos empregados como se pais fossem. Após a morte desses, a nova empregada passou a tomar conta dos infantes.

A ambiguidade que traz o autor à narrativa e aos devaneios da personagem principal carrega o conto do inicio ao fim.

Para muitos, a insanidade ou loucura se faz presente quando a moça começa a enxergar vultos e a interpreta-los como os antigos governantes falecidos, que continuam a querer cuidar das crianças.

Para outros, os fantasmas estão de fato lá, ao lado dos menores e cada um sente à sua maneira os efeitos de sua presença. Entretanto, apenas a criada havia visto os fantasmas dos quais possuía tanto pavor. É apresentada a real possibilidade de uma paranoia da governanta, que se desprendia da realidade naquele canto escuro do interior londrino.

Todavia, é relevante como Henry James retrata a distinção social, em apenas alguns relatos em sua obra. A mulher contratada pelo tio negligente das crianças após a morte dos antigos tutores, vinha de uma classe abaixo da família proprietária da mansão. Mesmo tendo pouco contato com seus pais, ou até mesmo com seus tios, as crianças entendem seu lugar e espaço no mundo que conhecem e sabem distinguir o lugar de fala da governanta. Dessa forma, passa a ser tratada como subalterna até que consiga ganhar a confiança dos menores, ao encarar de frente os fantasmas que os assolam.

Ao tentar entrar no mesmo circulo das crianças, chamando-lhes atenção, o menor lembra à governanta que o lugar de onde ela veio difere daquele onde estão situados os menores, sendo sempre ela, a errada. E tal atitude é corroborada pelo tio, quando pede que não o assole nem o incomode em nada, da mesma forma que nunca o questione ou emita qualquer opinião.

O fantasma vivo do tio, mas inerte, nunca aparecendo em cena, torna o conto mais sinistro ainda, pois estabelece e sugere uma família que ruiu com o tempo, com a modernidade e com a falta de convivência. O esforço feito pela governanta para adentrar o seleto grupo dos menores é intenso, fato que a extenua lentamente.

Só que Henry James cadencia com seu estilo singular, tornando a mulher uma possível louca, numa esquizofrenia aguda que carregava consigo as crianças. Onde quer que fosse, a presença de sua insanidade viria em forma de vultos assustadores, vistos apenas duas vezes em toda estadia na casa.

A solução seria mudar-se, falar com o proprietário, sumir com as crianças. Mas a ambiguidade retorna quando outra volta é dada ao parafuso. Diferentes interpretações também são dadas pelas crianças, que não confiam a principio em sua tutora, pois ainda pertence a uma classe que difere da sua. Ao ganhar a confiança dos menores com o tempo, a loucura ou a realidade não pode mais ser desvendada.

De toda forma a única maneira de salvar seus queridos protegidos seria sair do local, impossibilitado pelo fato do tio não aceitar tal sugestão, ou fugir.

A narrativa demostra um certo capricho ao comtemplar a convivência das crianças com aquela mulher que agora era tudo para elas, num misto de desconfiança e não aceitação, com acatamento e respeito. É de assustar a descrição do menor que a princípio se assemelha ao próprio mal em pessoa, mas depois passa a ser retratado como vítima por tudo o que já passou na vida, tendo apenas 10 anos, mostrando-se delicado e inteligente, uma personalidade difícil de distinguir entre suas descrições da realidade e do que é simples história de criança.

No meio disso, a luta da nova governanta para conseguir ganhar a confiança das crianças e suas visões horripilantes travam uma batalha que mais parece rondar a psicopatia e a esquizofrenia, litigando contra tudo o que representa o real responsável das crianças, que as enclausuraram num castelo assustador, longe de qualquer tipo de amor ou aceitação.

Nesse caso, a psicopatia e o conceito de realidade alterada, se comprovada, seria a forma de proteção que a governanta adotou para aceitar e promover a defesa das crianças, as quais acreditava ter total responsabilidade sobre.

Assim, a provável psicose transformaria a tutora em uma protetora audaz e pertinente para com as reais vitimas do conto; esquecidas e rejeitadas numa mansão nos ermos dos campos ingleses.

Mas o conto se torna ainda mais sinistro quando James o encerra, tornando uma possível governanta esquizofrênica numa súbita assassina, não percebendo os seus atos bruscos que refletem o mais puro amor e que podem também tirar a vida.

Henry James trancou a verdade ou a possibilidade de realidade no fundo da caixa de ferramentas, perdida junto com o parafuso apertado mais de uma vez.


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Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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