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Pacote Anticrime: modulação jurisprudencial e (in)segurança jurídica

Pacote Anticrime: modulação jurisprudencial e (in)segurança jurídica

A superveniência da Lei nº 13.964/19, popularmente conhecida como “pacote anticrime”, promoveu o mais recente conjunto de reformas penais e processuais penais da legislação brasileira. Isso todos sabem.

Também foi possível notar que a reforma acompanhou a tendência mundial de miscigenação dos sistemas jurídicos, importando cada vez mais instrumentos de características vinculadas ao commom law. Se a adaptação foi bem estruturada ou não, a discussão ficará para um próximo artigo.

Nosso objeto central hoje, é chamar atenção para a modulação jurisprudencial que as cortes superiores deverão encarar como consequência desse pacote.

A questão não apenas é pauta de grande importância, como também deverá ser motivo de preocupação para a comunidade jurídica, pois as cortes superiores vêm tentando herculeamente – sem sucesso – forçar uma cultura de precedentes.

Ora, podemos iniciar tomando como exemplo o Superior Tribunal de Justiça, que nasce com a missão de uniformizar a jurisprudência das matérias infraconstitucionais, portanto, fazendo o enfrentamento direto das alterações positivadas na Lei nº 13.964/19.

Recentemente, no dia 15/09/2020, fora noticiado que a 6ª Turma da Corte Superior julgou o Habeas Corpus nº 583.995, cujo teor – ao contrário do que faz crer o sistema acusatório e a nova redação do art. 311 do Código de Processo Penal – por votação apertada, denegou o writ, afirmando que o magistrado estaria autorizado, ex officio, a converter a prisão em flagrante de um indivíduo na sua prisão preventiva.

A justificativa, conforme o voto vencedor, liderado pelo Min. Rogério Schietti, se alicerça basicamente na urgência e excepcionalidade do caso, além de um dever – como foi colocado – de o magistrado assegurar não apenas as garantias do indivíduo, mas também as da sociedade e os anseios da justiça.

Em que pese não ter sido publicado o acórdão até o presente momento, a voto vencedor já nos permite extrair diversas reflexões sobre segurança jurídica e processo penal.

Uma delas, se me permitem, é a utilização crescente nas legislações e decisões judiciais de termos genéricos e abertos, que favorecem e dão margem para que se decida “qualquer coisa sobre quase tudo”, n’outras palavras, que se pratique o “decisionismo”.

Nos parece que a real cultura do judiciário brasileiro, tem sido promover uma confusão entre interpretar e legislar. Afinal, ao extrair algo que inexiste num texto normativo, estariam de fato legislando.

A nova redação do art. 311 do Código de Processo Penal apregoa:

Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Ora, percebe-se claramente que não há qualquer hipótese de exceção elencada no artigo. Isso nos leva a questionar qual a origem das exceções cotidianamente utilizadas pelos colegiados brasileiros, se não existe margem interpretativa para tanto. A conclusão, logicamente, é que se não está havendo interpretação, está ocorrendo uma legislação indevida e ilegal por parte das nossas cortes.

Isso fica claro quando decisões como a referida contrariam frontalmente o Código Processual Penal, que é claro e objetivo – com pouca ou nenhuma margem interpretativa diversa. E pior ainda, servindo-se para isso das palavras mágicas, “urgência” e “excepcionalidade”. Daqui em diante, se abre uma janela que permitirá uma utilização ou não, ao bel prazer, das novas redações processuais.

Num segundo apontamento, podemos também citar a superada questão do confronto garantias individuais e interesse público. O combo do interesse público tem servido aos mais diversos propósitos recentemente, principalmente mitigar as garantias individuais, a pretexto de uma (pseudo)leitura difusa do processo penal.

Sobre o paradigma, o Professor Aury Lopes Junior desmistifica o impasse na sua obra “Fundamentos do Processo Penal”, ensinando que, em matéria penal, todos os interesses em jogo – principalmente os do réu – superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensão dos direitos e garantias fundamentais, portanto, também considerados públicos.

Em síntese, estamos a tratar de leis e decisões cada vez mais genéricos, que, por razões de opção política criminal ou diversa, gradativamente estão ceifando a segurança jurídica do nosso sistema processual.

Paradoxalmente, os próprios tribunais superiores que surgem para conferir segurança, são os protagonistas da sua degeneração. Por mais basilar que seja, o nosso sistema penal tem falhado em garantir esse pilar do estado de direito, especialmente agora, com os recentes e improvisados transplantes sistemáticos.

Isso é grave. Se no estado democrático a legalidade e a igualdade são pilares essenciais, no estado de direito, a principal finalidade é um ordenamento e que possam conferir segurança jurídica aos cidadãos, como bem leciona o Professor Leonardo Carneiro da Cunha.

Nessa linha, eis o novo desafio da comunidade jurídica e do Estado brasileiro nos próximos capítulos: aproveitar o período de reformas e mudanças, para reavaliar a condução da nossa modulação jurisprudencial, sobretudo, em áreas tão extremas como o processo penal.

Leia também:

Como a Nova Zelândia tem inspirado os passos da justiça penal brasileira


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