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Pacto Brutal: se o julgamento fosse hoje, Guilherme de Pádua seria preso?

Depois de assistir aos 5 episódios do documentário de “true crime” da HBO Max, intitulado Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”, achei importante trazer a vocês algumas considerações acerca do tema, sob o viés jurídico.

“Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”, o documentário da HBO Max, sob um viés jurídico.

Se você quiser entender os meandros do caso, portanto, segue a thread

1. Guilherme de Pádua e Paula Thomaz foram condenados, em 1997, pelo assassinato da filha primogênita de Glória Perezfamosa roteirista da Rede Globo, cuja filha Daniella Perez morreu brutalmente, aos 22 anos, em 1992 (sim, isso mesmo que você leu, demorou de 1992 até 1997 para o julgamento efetivamente acontecer!). A sentença condena o também ator e colega de elenco de Daniella na novela da Rede Globo “De Corpo e Alma” (Guilherme fazia, no folhetim da Rede Globo, o personagem Bira, que ironicamente teria um affair com a personagem de Daniella, Yasmin) e sua esposa na época, Paula, por homicídio duplamente qualificado com premeditação (Guilherme em 15/01/1997, e Paula em 16/05/1997), sentenciando Guilherme a 19 anos de reclusão, e Paula a 18 anos e 6 meses de reclusão, aplicando-se a ela uma atenuante devido ao fato de a ré ser menor de 21 anos de idade, à época do crime. Premeditação é quando a pessoa planeja o homicídio com antecedência, ao invés de praticá-lo no “calor do momento”. E os julgamentos ocorreram em datas diferentes porque os réus tinham defesas conflitantes e optou-se por apartar os processos devido ao “dilema do prisioneiro”, sobre o qual vou falar mais à frente (sem spoiler rs). 

2. Ter menos de 21 anos, segundo a lei penal, é uma “atenuante de imaturidade” do agente, que também se aplica aos maiores de 70 anos, que, segundo o espírito do legislador, ao criar o artigo 65 do Código Penal, com essa “minorante/atenuante etária”, considerou que os maiores de 70 anos têm uma fragilidade por conta de uma possível “senilidade” – o que é um verdadeiro absurdo no caso dos idosos, mas como os beneficia, até passa, na minha humilde visão.

3. Redução de pena é quando se tem uma atenuante/minorante da pena (algo que “suavize” a conduta do agente autor do crime, como por exemplo uma confissão, ou a tentativa de “evitar ou diminuir as consequências do crime”), e agravante, por sua vez, é quando se tem algo cruel e inexplicável que torna o crime ainda mais bárbaro (motivo torpe, meio cruel, e por aí vai). Esse tema é tratado de forma muito didática no artigo 65 do Código Penal. No caso específico de Guilherme e Paula, eles foram condenados com duas agravantes, quais sejam: a) motivo torpe – que é basicamente matar alguém por um motivo imbecil, embora motivo nenhum justifique matar uma pessoa – e b) impossibilidade de defesa da vítima – quando a vítima não tem a menor chance de se defender, como a Daniella Perez, que teria chegado desacordada ao local do crime -.

4. A sentença foi fixada em menos de 20 anos de reclusão porque, segundo o artigo 607 do Código de Processo Penal, um réu condenado, no Tribunal do Júri, a uma pena igual ou superior a 20 anos de reclusão, tem direito a fazer o chamado “Protesto por Novo Júri”, que normalmente é deferido pelo Judiciário, fazendo com que tudo volte à estaca zero, e haja um novo julgamentoEntão esse era, digamos assim, o hábito da época, buscando evitar isso, para, inclusive, não postergar o sofrimento das famílias enlutadas

5. A literalidade do art. 607: “O protesto por novo júri é privativo da defesa, e somente se admitirá quando a sentença condenatória for de reclusão por tempo igual ou superior a 20 (vinte) anos, não podendo em caso algum ser feito mais uma vez”. Bem, menos mal que só se pode pedir isso uma vez, né? Senão iria virar um eterno looping

6. Ambos recorreram da decisão. A pena de Guilherme de Pádua se manteve em 19 anos de reclusão, e a de Paula Thomaz diminuiu para 15 anos de reclusão, em sede de recurso (na segunda instância, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). 

7. Eles foram liberados após cumprirem um terço da pena, saindo do regime fechado em 1999, ou seja, menos de 7 anos depois dos fatos (eles estavam presos desde que foram identificados como autores, em 1992)Na época, o homicídio qualificado não era crime hediondo (segura que vou chegar nesse ponto abaixo), portanto, com um terço da pena cumprida os réus tiveram direito a ir para o regime semiaberto, que é bem mais flexível, e permite até estudar

8. A título de curiosidade: a Paula, pasmem, se formou em Direito, e hoje advoga (não encontrei a sua OAB no Cadastro Nacional, apenas a de seu marido, o advogado Sérgio Ricardo Rodrigues Peixoto, inscrito na OAB/RJ sob o nº 070.572 – então eu imagino que ela seja somente bacharel, e não advogada de fato) ao lado do marido, e tem 3 filhos, sendo que a mais nova ela prepara desde os 3 anos de idade para ser atriz (informação extraída do site dedicado ao caso(https://www.daniellaperez.com.br), que aliás eu recomendo fortemente, visto que a curadoria é feita pela própria mãe da vítima, que disse na época em que este fato se tornou público, em 2021, que Paula era “obcecada” por Daniella, e que não a espantaria se ela, Paula, “levasse a menina para os testes de uma novela” dela, Glória). Guilherme de Pádua hoje é pastor, e está em seu terceiro casamento. Mas como prometi a vocês que só falaria sob um viés técnico, vou poupá-los de qualquer comentário de cunho ético/moral.

9. Alguns detalhes importantes sobre o julgamento: uma testemunha essencial para a elucidação do caso foi o Sr. Hugo da Silveira, que ao passar pelo local ermo do crime (ele morava nas imediações, e ao identificar o que ele considerou uma “movimentação atípica” na região, saiu de carro, com seu motorista, para “fazer uma ronda”, na tentativa de entender o que estava acontecendo ali), anotou as duas placas dos carros de Guilherme e Daniella, por achar inusitada a movimentação no local (posteriormente se constatou que Guilherme teria adulterado a placa do seu carro pra cometer o crime, trocando um “L” por um “O“, o que se constatou em perícia no veículo, e foi um dos fatores que contribuíram para que o Júri considerasse o crime como “premeditado”). 

10. Inclusive, foi feito, na época, um exame pericial raro, chamado de “teste de luminosidade”, e que, ao fim e ao cabo, comprovou que, ao ligar a luz alta do carro, Guilherme (que provavelmente nesse momento já estava de saída, com a esposa Paula Thomaz ao seu lado no carro) teria lançado luz sobre o rosto da mulher, que foi reconhecida pela testemunha, o Sr. Hugo, a partir de uma foto de jornal. Isso é importante porque Guilherme queria assumir o crime sozinho, inicialmente, para proteger a mulher grávida. Depois que ambos foram indiciados, o que se sucedeu foi o famoso “dilema do prisioneiro”, em que um se voltou contra o outro. Aliás, o dilema do prisioneiro é algo que vale outro artigo por si só. 

11. Outra testemunha vital para o caso, mas que teve seu depoimento desconsiderado, por ser considerado o que chamamos de “hear say”, em que a pessoa apenas “ouviu falar” que algo aconteceu, foi a Sra. Ivana Crespaumer, que diz literalmente no documentário: “Eu esperava tudo, menos ouvir da boca da assassina que odiava a Daniella, que ela era mimada”. Ivana Crespaumer visitava uma pessoa na mesma cadeia em que estava Paula, e diz ela que, em uma das visitas, ouviu Paula confessar o crime e dizer que “mataria ela mil vezes

12. Existem outras discussões interessantes de cunho probatório, como a) a discussão sobre a arma do crime ser uma tesoura ou um punhal (que na verdade traz consigo todo um debate sobre se o crime teria ocorrido, ou não, a partir de um verdadeiro “pacto” ocultista – só esse item daria um artigo em si); b) a “confissão indireta” de Paula, como foi assim considerada pelo Júri; e mesmo c) a questão da diferença entre verdade real e verdade processual (“existem muitas versões, mas apenas uma verdade”), porém não pretendo me alongar muito nisso, senão o texto fica enorme. Caso tenham interesse, posso fazer um segundo texto mais focado no julgamento em si, mastodas as informações possíveis sobre o caso estão no site mencionado lá em cima.

13. Um último aparte sobre o julgamento (pra quem é aficcionado por proteção de dados, como eu): a Paula, já formada em Direito, interpôs recurso ao Superior Tribunal de Justiça, em 2017, pedindo o “direito ao esquecimento”, que beeeeeem resumidamente é o direito a que todas as informações sobre o crime e o processo sejam apagadas, e nada mais a associe ao crime (ela tentava, desde 2013, impedir – sem sucesso -, a veiculação de uma matéria de 2012, da Revista IstoÉ, a respeito do caso, embora em primeira instância até tenha conseguido uma sentença favorável, que estabelecia danos morais em favor de Paula e a obrigação da editora de retirar a reportagem do ar). Paula, que agora se chama Paula Nogueira Peixoto, literalmente almejava uma vida nova, sem nenhum rastro do crime que teria cometido no passadoO pedido de Paula foi negado pelo STJ, em 2020, no Recurso Especial 1.736.803, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que citou, em seu julgado, dois casos paradigmáticos: o caso da Chacina da Candelária e o caso Aida Curi (Julgado disponivel no Site do STJ).

14. Lembrando que, em fevereiro desse ano, o Supremo Tribunal Federal reiterou esse entendimento, ao determinar que o “direito ao esquecimento” (que existe na GDPR, por exemplo, o General Data Protection Regulation, ou Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu) é incompatível com a Constituição Federal de 1988, dizendo, em decisão majoritária (não foi unânime, definitivamente), que “é incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento que possibilite impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação”. Esse julgamento foi no Recurso Extraordinário 1010606, em que familiares da vítima de um crime de grande repercussão nos anos 1950, no Rio de Janeiro, buscavam reparação pela reconstituição do caso, em 2004, no programa “Linha Direta”, da Rede Globo, sem a autorização da família. Mas essa discussão sobre privacy merece um artigo à parte, então voltemos ao que interessa. 

15. Sobre o homicídio qualificado, conforme já comentei acima, ele não era, à época, considerado crime hediondo. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) dificulta bastante a progressão de regime, fazendo com que o condenado passe muito mais tempo no regime fechado, ou seja, na cadeia. O artigo 2º, § 1º, da Lei hoje  estabelece (na verdade primeiro estabelecia que o regime seria “integralmente fechado”, depois mudou para a redação atual, em 2006/2007, e atualmente nem ela é necessariamente aplicável, como veremos a seguir) que a pena por crime previsto como hediondo será cumprida “inicialmente em regime fechado”. Sem contar que a lei considera o rol de crimes nela contidos crimes inafiançáveis (não passíveis de saída da prisão através do pagamento do benefício da fiança, outro tema que, sozinho, daria um texto em si). 

16. Bem, após a condenação dos assassinos, em 1997, no que foi chamado de “O Julgamento da Década” (pela sua grande repercussão, ao envolver uma atriz de destaque em uma novela do horário nobre da Globo, em uma época em que ainda não tínhamos os serviços de streaming ou mesmo a internet), Glória Perez, mãe da vítima, que foi uma verdadeira “paladina da justiça” nesse caso, durante a investigação e no curso do processo (chegando a convencer algumas pessoas a testemunharem colocando fotos da filha morta por debaixo da porta), mobilizou o país inteiro em sua iniciativa: fazer um país, do Oiapoque ao Chuí, assinar um abaixo-assinado para alterar a Lei dos Crimes Hediondos, visando incluir o homicídio qualificado no rol de crimes

17. Glória Perez, valendo-se do dispositivo constitucional da “iniciativa popular”, previsto no art. 61, § 2º, da Constituição Federal de 1988, mobilizou um país inteiro, na busca de 1,3 milhões de assinaturas que levaram a um Projeto de Lei (para alteração da Lei dos Crimes Hediondos), cuja iniciativa partiu da população, que segundo a Constituição Federal de 1988, tem o poder de, em se mobilizando adequadamente, apresentar ao Poder Legislativo um Projeto de Lei, que obrigatoriamente deverá ser examinado e votado pelo Congresso. 

18. A literalidade do artigo da Constituição: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. (…) § 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”.

19. Assim surgiu o Projeto de Lei de Iniciativa Popular Sobre Crimes Hediondos (posteriormente, a Lei 8.930/94), também conhecido como “Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez”, que alterou a lei para incluir no rol de crimes hediondos exatamente o homicídio qualificado, crime que na redação original da lei seria cumprido em “regime integralmente fechado”, significando que, caso Guilherme e Paula tivessem cometido o crime em 1994, após o início da vigência da alteração legislativa, cumpririam a pena inteira no “xilindró”, é dizer, na cadeia – embora nada disso fosse aplicável a Guilherme e Paula, uma vez o delito foi cometido em 1992, ou seja, antes da alteração, e um dos princípios básicos da lei penal é que ela não pode retroagir em desfavor do réu (principio da irretroatividade, previsto no artigo 5º, incisos XXXIX e XL, da Constituição Federal de 1988, que estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia imposição legal” e que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”). 

20. O Projeto de Lei foi apresentado ao Congresso em caráter de “urgência urgentíssima” (como é conhecido o “regime de urgência” ou “urgência regimental”, previsto no artigo 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados), regime este que prevê a deliberação instantânea de matéria considerada de “relevante e de inadiável interesse nacional. Por meio dele, são dispensadas todas as formalidades regimentais, exceto as exigências de quórum, pareceres e publicações, com o objetivo de conferir celeridade ao andamento da proposição, dada a sua importância para a nação. 

21. O requerimento para adoção do rito de “urgência urgentíssima” deve ser apresentado pela maioria absoluta dos Deputados, ou por líderes que representem esse número. Aprovado o requerimento, também por maioria absoluta, a proposição a que se refira poderá ser incluída automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação na mesma Sessão (ou seja, o quanto antes). 

22. Em 2006, no entanto, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 82.959, de relatoria do ministro Marco Aurélio, alterou o entendimento inicial da Lei, que inicialmente foi sancionada com “regime integralmente fechado” para os crimes hediondos, declarando de uma vez por todas, a inconstitucionalidade da redação original do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, por entender que a obrigatoriedade do regime fechado conflita com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal de 1988. Esse entendimento, na verdade, já vinha desde 2012, ano em que, por maioria, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 111.840, relatado pelo ministro Dias Toffoli, entendeu, pela primeira vez, pela inconstitucionalidade do regime integralmente fechado proposto inicialmente pelo art. 2º, § 2º, da Lei de Crimes Hediondos, que teve sua redação alterada para a atual – “regime inicialmente fechado” – em 2007, com o advento da Lei 11.464/07).

23. Com isso, o STF editou a Súmula Vinculante 26: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

24. Importante dizer também que, em 2019, foi sancionada a Lei 13.964/19, o chamado “Pacote Anti-Crime”, que trouxe relevante alteração no regramento atinente à progressão de regime para réus condenados pela prática de crimes hediondos: o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90 foi expressamente revogado pelo art. 19 da nova legislaçãoo que significa dizer que não mais se aplica o entendimento de que a progressão de regime, quando se tratar de crime hediondo ou equiparado, também se dará em lapso temporal mais dilatado (Lei 8.072/90, art. 2º, § 2º). Ao mesmo tempo, o Pacote Anti-Crime alterou a Lei de Execuções Penais, a famosa “LEP” (Lei 7.210/84), assunto sobre o qual você pode ler mais a respeito abaixo.

25. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o entendimento de que as alterações feitas ao artigo 112 da LEP, pelo Pacote Anti-Crime, deveriam permanecer, no Agravo em Recurso Extraordinário 1.327.963, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

26. A manifestação do ministro foi pelo reconhecimento da repercussão geral (as teses com repercussão geral se referem aos recursos extraordinários que já foram julgados e já tiveram suas teses fixadas, podendo ser multiplicados e atribuídos a todos os processos semelhantes que estavam suspensos aguardando o julgamento) no sentido de que ao reincidente não específico em crime hediondo, aplica-se, inclusive retroativamente (o nosso sistema jurídico permite a retroatividade “in bonam partem”, é dizer, em favor do réu), o inciso V do artigo 112 da LEP para fins de progressão de regime (ele traz um percentual para cumprimento da pena menor, nesse caso específico, sendo mais benéfico ao réu). Reincidentes não-específicos são os apenados que foram condenados por crime hediondo, mas que são reincidentes em razão da prática anterior de crimes comuns. 

27.No julgamento do Pacote Anti-Crime, o relator, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, explica que o Pacote Anti-Crime alterou o artigo 112 da LEP em relação à progressão de regime dos condenados, prevendo três situações dignas de nota: a) a primeira é o caso do réu primário condenado por crime hediondo (40% da pena deve ser cumprida para se pleitear a progressão de regime); b) a segunda é referente aos réus primários condenados por crime hediondo ou equiparado, com resultado morte ou em posição de comando da organização criminosa (50% da pena deve ser cumprida para se pleitear a progressão de regime); e, por fim, c) a terceira é a hipótese de réu reincidente específico na prática de crime hediondo, ou seja, uma pessoa condenada reiteradamente por crimes hediondos (60% da pena deve ser cumprida para se pleitear a progressão de regime). 

28. A decisão se deu no Agravo em Recurso Extraordinário 1.327.963, que teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.169) e mérito julgado no plenário virtual. Ou seja: nada mudou para a situação hipotética de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, réus primários (o que significa dizer que nunca haviam cometido um crime), que se tivessem cometido hoje o mesmo crime hediondo com resultado morte, ainda assim teriam, em tese, que cumprir 50% da pena para então pleitear o benefício (como já estabelecia a Lei de Crimes Hediondos antes do Pacote Anti-Crime), a depender do Juiz. Falo mais sobre essa “dependência do Juiz” abaixo. 

29. Hoje, a redação do artigo 112, inciso VI, da LEP ficou assim: “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: (…) VI – 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional”. Vale lembrar que tanto Guilherme quanto Paula eram réus primários, conforme já mencionei acima. 

30. Se o julgamento fosse hoje, portanto, ao invés de terem ficado menos de 7 anos na cadeia, eles ficariam no mínimo 9 no caso dele, e 7 anos e meio no caso dela, presumindo que ambos tivessem bom comportamento (ou seja, além do requisito objetivo, que é o tempo de pena, a lei exige, no próprio artigo 112, § 1º, da LEP, um requisito subjetivo, que é a “avaliação social”). O artigo 112, § 1º, da LEP, em sua redação atual, assim determina: “Em todos os casos, o apenado só terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão”. 

31. A ressalva: como a progressão é um benefício, caso o condenado não cumpra o determinado pela lei quando progredir, ele pode retornar ao regime anterior e ser novamente preso (o que não aconteceu nesse caso). Isso é o que estabelece o artigo 118 da LEP, nas seguintes hipóteses: a) praticar fato definido como crime doloso ou falta grave (definidos no art. 51 da LEP); b) sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne incabível o regime (artigo 111 da LEP); e c) frustrar os fins da execução ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta. No caso em tela, o documentário menciona que chegaram a penhorar um apartamento de Paula recentemente, com vistas a garantir o pagamento da multa que lhe foi cominada em um dos processos por danos morais movidos por Glória Perez e por Raul Gazolla (também ator e viúvo de Daniella Perez) contra os assassinos

32. Porém, a ressalva mais importante e decisiva: em 2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal definiu, de uma vez por todas, no Agravo em Recurso Extraordinário 1.052.700, relatado pelo ministro Edson Fachin, que “é inconstitucional a fixação ex lege, com base no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, do regime inicial fechado, devendo o julgador, quando da condenação, ater-se aos parâmetros previstos no artigo 33 do Código Penal. Isso é o que estabelece, desde 2018, a Súmula Vinculante 36 do Supremo Tribunal Federal (um preceito que tem que ser seguido por todos os juízes do país). Significa dizer que, se o Juiz assim entender, ele pode até mesmo dispensar a necessidade do regime inicialmente fechado (ou seja, um condenado por crime hediondo pode, em tese, não passar um dia sequer preso, o que eu considero uma “excrescência”, mas tudo bem, não estamos aqui pra julgar e sim pra relatar o caso do ponto de vista jurídico). 

33. Conclusãose o crime fosse cometido hoje, por sua hediondez e primariedade dos réus, o regime inicialmente fechado não seria obrigatório, mas quero pensar que seria uma unanimidade entre os juízes, dada a gravidade e as circunstâncias que permearam o crimePortanto, pode-se dizer que a luta de Glória Perez não foi em vão, pois endureceu significativamente o regime aplicável ao homicídio qualificado(apesar de hoje não ser mais obrigatório, nem nos crimes hediondos, que o regime seja inicialmente fechado, conforme expliquei acima).

34. Como diz um trecho do julgamento do Habeas Corpus 111.840/12, do Supremo Tribunal Federal, “tais circunstâncias não elidem a possibilidade de o magistrado, em eventual apreciação das condições subjetivas desfavoráveis, vir a estabelecer regime prisional mais severo, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo, nos termos do § 3º do art. 33 c/c o art. 59 do CP/1940. A progressão de regime, ademais, quando se cuida de crime hediondo ou equiparado, também se dá em lapso temporal mais dilatado (Lei 8.072/90, art. 2º, § 2º)”. Essa última parte, lembremos, foi revogada pelo Pacote Anti-Crime, conforme eu já mencionei acima.

35. Na minha modesta opinião, esse seria exatamente o caso do crime brutal cometido contra Daniella Perez, em que nenhum Juiz em sã consciência (embora tenha um velho ditado gaudério que diz que “de bolsa de mulher, barriga de grávida, cabeça de Juiz e pata de cavalo pode sair qualquer coisa” rs) dispensaria Guilherme e Paula do regime inicialmente fechadoMas e vocês, o que acham de tudo isso? Por favor, teçam seus comentários, adorarei escutá-los!

36. Termino esse texto com duas frases da Glória Perez que me marcaram muito ao longo do documentário: “Não há vitória possível quando se perde um filho dessa maneira. Nada é vitória mais” e “Eles não param de matar a Dany. Todos os dias”, falando sobre as versões mirabolantes dos criminosos, a imprensa sensacionalista (que, se valendo de fotos da novela, em que os personagens Yasmin e Bira tinham um affair, por vezes insinuava um relacionamento extraconjugal entre Daniella Perez e Guilherme de Pádua), e até mesmo as (inusitadas e frequentes) invasões e tentativas de invasão cometidas pela população no túmulo de Daniella, cujo corpo teve de ser trocado de local por duas vezes (pois o túmulo, pasmem, volta e meia era aberto, segundo Glória Perez, por curiosos querendo ver o corpo da vítima). 

Um abraço, e acho que deu pra perceber que eu recomendo fortemente o documentário a todos (inclusive e especialmente aos amantes de privacy como eu)!

Helena Vasconcellos

Ps: segue, junto a esse artigo, um infográfico que eu fiz com a timeline dos principais acontecimentos. Vale à pena conferir, modéstia à parte rs.

Infografico
Pacto Brutal: se o julgamento fosse hoje, Guilherme de Pádua seria preso? 3

Publicado por Helena Vasconcellos, advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados, DPO certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP.

Em caso de dúvidas adicionais, seguem os contatos da autora: LinkedIn https://www.linkedin.com.br/in/helenavasconcellos, e e-mail helena.vasconcellos@gmail.com.

Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez
Infografico

Diretor: Glória Pérez

Data de criação: 2024-03-18 23:13

Classificação do editor:
5

Helena Vasconcellos

Advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados, DPO certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP.

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