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Padre António Vieira na Santa Inquisição

Padre António Vieira na Santa Inquisição

A defesa de tese do Sérgio Augusto Kalil, ocorrida semana passada no IEL/UNICAMP, é digna de nota e louvor. O texto primoroso do doutorando – agora Doutor em Teoria e História Literária, sob orientação do Professor António Alcir Bernardez Pécora – abordou com originalidade impecável a condução inquisitorial (acusatória) e a respectiva defesa do processo de heresia do Padre António Vieira perante o Tribunal do Santo Ofício, de 1663 a 1668.

Processo, acusação e defesa ocorridos no século XVII português são muito semelhantes a processo, acusação e defesa ocorridos no Brasil atual. Metodologias e historiografias à parte, é impressionante como o processo inquisitorial português do Antigo Regime guarda semelhança com os ritos – e bastidores – da ação penal à brasileira no presente século XXI.

Mas essa é mera observação, inevitável. O foco do trabalho não era esse, e o autor jamais cometeria tamanho anacronismo ou falha metodológica. Ao contrário, o método foi impecável, verdadeiramente exemplar e inspirador.

A tese central, que se inicia na análise detida da acusação – deflagrada a partir da famosa carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo” –, diz sobre as estratégias retóricas (e, evidentemente, teológicas) de Vieira na condução de sua defesa, não obstante a sina persecutória do inquisidor Alexandre da Silva que a todo instante cerceava sua defesa e manipulava as provas.

Fica certo que Vieira não conhecia muito bem o “processo penal” da Inquisição, disciplinado especialmente no Regimento de 1640. Um processo penal que se iniciava com a prisão (“preventiva”) do acusado, e que ainda assim foi postergada em pelo menos dois anos, só pelas esquivas de citação e apresentação de defesa prévia. O argumento principal era a complexidade das acusações diante do princípio que ele denominava direito natural de defesa (“impedimento legítimo não permite cômputo do tempo”).

Vieira estava fortemente centrado nas perspectivas dialética e lógica, com fundamentação teórica em Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino. Tais métodos muitas vezes confundiam o inquisidor, e com isso o acusado conseguiu uma série de feitos procrastinatórios bem capazes de pôr certa ordem progressiva na sua defesa – a todo tempo boicotada pelo julgador-acusador.

Não fosse tal estratégia, que ainda assim o levou a uma condenação (mais branda, todavia), era possível que tivesse sido condenado antes e mais gravemente. Tem-se a clara impressão de que sua condenação já estava encomendada, e o rito (processo) era apenas pro forma.

Padre António Vieira foi condenado pela Inquisição à reclusão e ao silêncio. Um ano depois, recebeu o perdão, e em seguida a indulgência perpétua (de grande valia, pois que por ainda muito tempo ao Santo Ofício era facultado processar os mortos, e condenar a sua alma e reputação religiosa). O jogo de xadrez perpetrado pela (auto)defesa vislumbrava uma possível perda “em primeira instância”, com todas as condições de anular a condenação diretamente no Vaticano, o que de fato ocorreu. Muito menos que o processo penal canônico, foi o gênio da retórica e da teologia que contribuiu diretamente para tal resultado.

Sérgio Augusto Kalil é nome que merece atenção. Em poucos dias a UNICAMP deve disponibilizar sua tese no banco de teses. E muito provavelmente, até por recomendação expressa da banca, o material será publicado. Recomendo fortemente!

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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