Quais são os padrões de acolhimento da população LGBT privada de liberdade no Brasil?
Talvez você nem soubesse que existem padrões de acolhimento para a população LGBT privada de liberdade no Brasil, e não estou falando da normativa internacional de proteção dos Direitos Humanos, por certo aplicável ao caso, também dos dispositivos constantes da Constituição Federal de 1988, em especial considerando o disposto no art. 5º, incisos III, XLI, XLVII, XLVIII, XLIX, tampouco da legislação infraconstitucional, como, por exemplo, a Lei de Execução Penal, mas de Resolução administrativa conjunta, a de nº 01, de 15 de abril de 2014, firmada entre o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação – CNCD/LGBT.
Essa resolução é surpreendente, na medida em que faz referência enquanto uma das justificativas a confecção da mesma, aos chamados Princípios de Yogyakarta ou princípios sobre a aplicação da lei internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.
Talvez você também não soubesse da existência dos Princípios de Yogyakarta, o que torna surpreendente, por certo, a menção referida pela resolução, conforme pontuei acima. Pois, estabelecemos que os Princípios declinados foram firmados ainda no ano de 2006, em reunião realizada na cidade de Yogyakarta, Indonésia, pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos, os quais objetivavam construir um documento que trouxesse como de fato o fez, um conjunto de princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos com base na orientação sexual e identidade de gênero, no sentido de dar mais clareza e coerência às obrigações de direitos humanos dos Estados nessa temática.
O documento reúne 29 princípios, além de recomendações adicionais, por ora e por delimitação de espaço e tempo, nos interessando o princípio de número 9, o qual dá conta do direito a tratamento humano durante a detenção, e que, por certo, encontra referência na resolução mencionada, conforme verificaremos.
Isso por que a resolução de nº 01 inicia dando conta de que estabelecerá parâmetros para o acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil, entendendo por população LGBT a composta por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, deixando de fora os Intersexos apenas e trazendo conceituações a cada composição logo em seguida.
O primeiro parâmetro, portanto, que deveria ser observado pela Administração Prisional, no caso, é o direito de a pessoa ser chamada pelo seu nome social, o qual deverá constar do registro de admissão no estabelecimento prisional, inclusive.
Como segundo parâmetro temos que nas unidades prisionais masculinas, às travestis e os gays privados de liberdade, dada a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos, que não se destinem a aplicação de medidas disciplinares, por certo, e que preservem o interesse e a assunção por parte da pessoa.
Ao que sabemos, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, apenas a Cadeia Pública de Porto Alegre – Presídio Central constaria com uma galeria destinada às travestis e transexuais, embora a resolução dê conta de que as pessoas transexuais masculinas e femininas deverão ser encaminhadas as unidades prisionais femininas, garantido tratamento isonômico com as demais mulheres as mulheres transexuais, facultados os usos de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero (ainda que fixado dentro do binarismo) e a manutenção dos cabelos compridos.
Garante-se o direito à visita íntima e a atenção integral à saúde, atendidos os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT e da Política Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP, inclusive através da manutenção do tratamento hormonal, no caso da pessoa travesti, mulher ou homem transexual, o que, inclusive, foi objeto de ação instada pela Defensoria Pública da União no Estado de São Paulo, recentemente.
A Resolução ainda equipara a tratamento desumano ou degradante, o que se traduz em tortura, a transferência compulsória entre celas e alas ou quaisquer outros castigos ou sanções em razão da condição da pessoa LGBT; garantindo em igualdade de condições o acesso e a continuidade da sua formação educacional e profissional, sob a responsabilidade do Estado; o qual deverá garantir a capacitação continuada aos profissionais dos estabelecimentos penais, considerando a perspectiva dos direitos humanos e os princípios da igualdade e da não discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero; bem como, garante-se à população LGBT o benefício do auxílio-reclusão aos dependentes do segurado recluso, inclusive ao cônjuge ou companheiro do mesmo sexo.
Estamos falando, por certo, de uma norma administrativa, mas conforme aos parâmetros legislativos internacionais de proteção dos direitos humanos, muitos deles ratificados pelo Brasil, portanto, vigentes no Direito Interno, e, também, conforme ao ordenamento constitucional brasileiro e a sua própria legislação infraconstitucional, possuindo, com isso, força o bastante para a sua efetiva implementação, que, se não se realiza na prática, pode ser buscada pelos atores atuantes no sistema de execução penal, no caso, Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia, Serviço Penitenciário, entre outros.
Assim, ainda que os Princípios de Yogyakarta possam não ter força obrigatória, a busca pela efetivação dessa resolução administrativa, tem, por certo, o condão de não apenas dar visibilidade a estes Princípios, mas, também, de acordo com as suas próprias recomendações adicionais, instar que as organizações profissionais, incluindo aquelas nas áreas médica, de justiça criminal e civil e educacional revisem as suas práticas e diretrizes para garantir que promovam vigorosamente a implementação destes Princípios, que nada mais visam do que assegurar o direito de liberdade de orientação sexual e de identidade de gênero.
Afinal, todos os seres humanos não nascem livres e iguais em dignidade e direitos? Não são todos os direitos humanos universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados?
Segue uma reflexão que deveríamos nos fazer, a qual, mais do que importante, se revela premente, diante do estado da arte brasileiro, quiçá em matéria de direitos.