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Panoptismo: reflexões atuais sobre vigilância e controle

Panoptismo: reflexões atuais sobre vigilância e controle

O panóptico não é um simples modelo arquitetônico, capaz de suprir as necessidades específicas de instituições de controle como prisões, hospitais, escolas e outras.

Nas palavras de Foucault (2011:194), o panóptico “deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana dos homens”.

Ele se insere em uma nova proposta de tecnologia política e representa um marco nas técnicas de vigilância que pretendem substituir o exercício pesado, custoso e inútil de poder que sustentou a soberania monárquica.

Dessa forma, o panoptismo não deve ser avaliado, quanto à sua implementação e reforço, a partir da existência ou inexistência de prédios que guardem proximidade ao que foi delineado por Bentham.

O panoptismo deve servir como categoria de análise, como ferramenta de compreensão de uma forma específica de “economia política”, de tecnologia e economia do controle e da punição.

O objetivo derradeiro do modelo panóptico não é a imposição de um castigo como fim em si, mas a promoção de “um grande experimento: a transformação do homem” (PAVARINI, 2006:214).

O homem vigiado, docilizado, submisso é o que se pretende obter com o sistema de vigilância permanente e difuso que o panóptico propõe. As disciplinas próprias deste sistema de controle “funcionam como técnicas que fabricam indivíduos úteis” (FOUCAULT, 2011: 199).

Para atingir seu objetivo, o panóptico não depende da vigilância concreta, mas da certeza de que ela está presente sem intermitências. “É, ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente”. (FOUCAULT, 2011:191).

Essa forma de controle disciplinar se estabelece na passagem do séc. XVII para o séc. XIX:

A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas. (…) as “luzes” que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas.

A conclusão a que chega Foucault e uma série de outros estudiosos (até antes, mas principalmente depois dele) é a de que o sistema disciplinar se instala com a tendência própria de sempre se alargar, nunca o contrário.

O poder disciplinar não desaparece depois da consolidação da burguesia no poder, mas também não tenta substituir por completo outras formas de exercício do poder. Ele se expande, se diferencia, se complexibiliza e ocupa espaços inacessíveis anteriormente.

O que se quer destacar é que esse processo, ao mesmo tempo em que não pode ser importado como categoria de análise “pura” e suficiente para a compreensão do sistema de repressão contemporâneo, sem que alguns ajustes metodológicos sejam feitos, não deve ser descartado como se fosse apenas apto a descrever um momento específico da história do controle social europeu.

Entre esses extremos há algo que parece subsistir como critério de análise útil. Pretende-se aqui apontar novas modalidades em que a vigilância desempenha, no modelo de controle atual, papel primordial.

Diferentemente do que se intentava anteriormente, porém, o objetivo não parece ser mais a formação de indivíduos dóceis ou úteis, mas a mera antecipação da barreira punitiva, com fins mais simbólicos do que reais; mais neutralizantes do que produtivos.

Um primeiro exemplo que merece ser citado são os mecanismos de prova fortemente referenciados nas operações de combate à corrupção. Na Lei 12.850/13, considerada um grande paradigma no comprometimento brasileiro com modelos de combate à corrupção internacional, o art. 3º estabelece os meios de obtenção da prova, como segue:

Art. 3o  Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
I - colaboração premiada;
II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;
III - ação controlada;
IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;
V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;
VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;
VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;
VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

Em que pese o fato de que algumas destas medidas já eram conhecidas da legislação processual penal que a antecede, fica clara a preferência legislativa por mecanismos de vigilância e controle fortemente insidiosos.

As afamadas “ações controladas” e “infiltração de agentes” são institutos hoje considerados imprescindíveis para a investigação de organizações criminosas, mas não se pode descartar o fato de que orbitam bem de perto medidas policiais próprias de um modelo de guerra, onde a suspensão de determinadas liberdades é justificada em prol da efetiva eliminação de inimigos públicos.

Muitas destas medidas não precisam de aprovação judicial para serem implantadas. A questão de obtenção de dados (não conteúdo) bancários e telefônicos já foi enfrentada por nossa jurisprudência e ficou pacificada a possibilidade de requisição pelo delegado ou pelo MP.

Não se pode atribuir à mera coincidência o fato de que, no mesmo ano em que a Lei 12.850/13 veio a lúmen, foi também aprovada a Lei 12.830/13, dispondo sobre as prerrogativas da polícia judiciária e do delegado no inquérito policial. A referida lei determina:

Art. 2o  As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. 
§1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos. (...)

Duas conclusões emergem desta breve análise: a uma, que os elementos de prova hoje considerados pela jurisdição como suficientes para o oferecimento da denúncia, em especial em crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa podem ser obtidos quase sem interferência jurisdicional.

A duas, que os mecanismos de vigilância passam a ganhar o status de técnica policial por excelência, o que os predispõe a receberem continuamente ofertas de ampliação.

Os meios pelos quais estes mecanismos de vigilância são efetivados não surgem no momento em que um cidadão se torna suspeito de um delito.

Existem hoje, literalmente, centenas de bancos de dados que se interligam a partir de nosso CPF. Crianças nascidas depois de 2015 podem receber automaticamente o registro no cadastro nacional de pessoas físicas sem custo em muitas comarcas.

As maneiras pelas quais é possível saber onde uma pessoa esteve e com quem esteve são praticamente ilimitadas. Através da obtenção de dados gerados pela antena interna dos aparelhos de telefone se consegue com grande precisão algumas destas informações.

O “CPF na nota”, obtido em praticamente qualquer comércio, é outro “aliado” na pesquisa sobre hábitos e movimentos. O uso de tecnologias de pagamento eletrônico do pedágio, como o “Sem Parar” (marca registrada), se somam a esse arsenal. Muitos outros dispositivos poderiam ser mencionados.

Não se trata de fazer um juízo de valor, neste momento, sobre a obtenção de indícios a partir destes mecanismos, para formação dos pressupostos mínimos para ação penal.

Antes, objetiva-se perceber o desenvolvimento crescente destas tecnologias, vendidas como grandes avanços em prol do conforto e comodidade de vida prática, em sua intrincada relação com sistemas de controle social.

Também não se trata de uma teoria da conspiração ou algo semelhante. Não se está aqui a afirmar que as empresas que lançam no mercado estas tecnologias o fazem com o fim de atender a demanda de um poder central que visa exercer vigilância sobre a comunidade.

Seria, no entanto, ingênuo ignorar que os grandes avanços tecnológicos que assistimos no século XX vieram fortemente alimentados por interesses bélicos.

Seria também ingênuo acreditar que esse interesse se desvaneceu por completo e que o panoptismo não passa de uma caricatura arquitetônica desenhada por Bentham e analisada por Foucault nos anos 70.

Vale lembrar que o combate à corrupção certamente não é o primeiro substrato a partir do qual medidas de vigilância incisivas colonizaram o cotidiano ocidental em tempos recentes. Vejamos o exemplo do terrorismo.

Em 26 de outubro de 2001, pouco tempo depois dos atentados, o Congresso norte-americano aprovou o USA Patriotic Act, autorizando interceptações de comunicações orais e eletrônicas, além de outros meios de vigilância, controle sobre transferência de recursos, restrições à imigração, reforço dos poderes da CIA, etc.

Em 13 de novembro de 2001 George W. Bush, então presidente, assinou uma outra norma reforçando o Patrioct Act. Trata-se do decreto Military Order, que autorizou o Secretário de Justiça prender estrangeiros sob mera suposição de risco, suspendendo a presunção de inocência, podendo as “provas” que embasaram a suspeita serem mantidas em secreto.

O acusado não teria direito a escolha de seu defensor. Para os detidos foram estabelecidos tribunais militares de exceção, sob o pretexto de estarem os EUA em guerra.

Ainda assim, os preceitos da Convenção de Genebra (direito de guerra) não foram aplicados aos estrangeiros presos porque estes não foram considerados pelo governo prisioneiros de guerra, numa lógica difícil de ser compreendida.

Sob a forte pressão de diversas organizações de direitos humanos, o presidente Bush acabou por aplicar a alguns presos o protocolo de Genebra, enviando outros para prisão cubana de Guantánamo. O critério para seleção nunca ficou muito claro.

Há, no momento, intenso debate nos EUA afim de que sejam proibidas as interceptações de comunicação de milhões de pessoas sem autorização legal, que continuam acontecendo, passados mais de quinze anos dos atentados.

Uma questão sensível precisará ser sempre levada em conta por todos aqueles que desejam viver sob um regime democrático de direitos: não há verdadeira liberdade onde seja possível, sob pretextos conjunturais, suspender as garantias que foram assentadas através de um processo árduo de consenso (como é uma constituinte).

Abrir mão dessas garantias, na confiança cega de que isso permitirá aos que exercem o poder perseguir os “vilões”, exige uma fé nos detentores do poder de profundidade abismal. Existem fortes motivos para crer que esta fé conduzirá a sério desapontamento.

 


REFERÊNCIAS

CALLEGARI, André Luiz; LINHARES, Raul Marques; LIRA, Cláudio Rogério Sousa; MELIÁ, Manuel Cancio; REGHELIN, Elisangela Melo. O crime de terrorismo: reflexões críticas e comentários à Lei de Terrorismo: de acordo com a Lei nº 13.260/2016. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2011.

MELOSSI, Dario. PAVARINI, Massimo. Carcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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