Para bom entendedor, meia palavra basta: um intérprete, por favor!
Por Danyelle da Silva Galvão
Já tratamos, na semana passada (veja aqui), sobre a (des)necessidade de tradução dos documentos escritos para o correto entendimento da acusação pelos estrangeiros. Agora, cabe-nos discutir, mesmo que de maneira breve, sobre a assistência de um intérprete no curso do processo penal.
Nosso Código de Processo Penal dispõe no art. 193, ao tratar do interrogatório, que o ato será feito por meio de intérprete “quando o interrogando não falar a língua nacional”. Por sua vez, a Convenção Americana e a Convenção Européia de Direitos Humanos preveem, respectivamente, em seus arts. 8.2.a e 6.3.e que é garantido minimamente ao acusado a assistência gratuita de um tradutor ou intérprete caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal.
A doutrina estrangeira enfatiza que o direito de ser assistido por um intérprete é um elemento essencial do direito a um processo justo (fair trail), já que ao acusado deve ser garantido o direito de participar efetivamente do processo criminal, não apenas em relação à sua presença, mas também relativamente ao seu pleno entendimento e compreensão da língua[1]. Para isto, impõe-se às autoridades o dever de facilitar os meios necessários e zelar para que o acusado tome conhecimento da realidade e das acusações[2].
A questão já foi discutida algumas vezes pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. No caso Stanford vs. Reino Unido, a Corte dispôs que deve-se garantir a participação efetiva do acusado no processo criminal, o que inclui não apenas o direito de estar presente, mas também de escutar e acompanhar – no sentido de compreender – todos os procedimentos.
Em outra oportunidade, a mesma Corte internacional já aduziu (caso Saman vs. Turquia) que o conhecimento linguístico do acusado é vital para examinar a natureza e gravidade da imputação que lhe é dirigida e para qualquer comunicação (oral e escrita) com as autoridades locais. Trata-se, portanto, de questão de interesse de todos os envolvidos no processo, além de ser pré-requisito essencial para a apropriada administração da justiça, com relação direta com a garantia da comunicação prévia e pormenorizada da acusação.
Em verdade, o intérprete viabiliza a correta e completa compreensão do acusado e a comunicação entre o acusado e as autoridades e, por isso, complementa o direito à defesa no sentido de aconselhamento técnico. Stefan Trechsel afirma que o “fair trail” somente será alcançado se a assistência do intérprete também for disponibilizada para a comunicação entre acusado e seu defensor, evidenciando-se, mais uma vez, a estreita ligação entre o exercício da ampla defesa com a garantia à interpretação[3]. Ou seja, mesmo que o juiz domine a língua do acusado, é imprescindível a presença de intérprete quando a defesa não disponha de igual conhecimento.
Certo é que o intérprete não pode interferir na substância das falas do acusado, mas é imprescindível para que haja efetiva compreensão sobre as acusações e garanta a participação do acusado nos atos processuais. E, como dito, eventualmente viabilize a conversa entre acusado e seu defensor.
Importante destacar que os textos convencionais garantem a assistência do intérprete, mas não a sua livre escolha, tal como ocorre em relação à defesa técnica. A diferenciação é importante porque o intérprete, diferentemente do defensor, é um intermediário neutro das autoridades e do acusado, sem atuação direcionada a favorecer quaisquer das partes.
Ademais, inexiste qualquer necessidade de relação de confidencialidade ou confiança entre acusado e intérprete. De qualquer sorte, como já decidiu o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (casos Diallo vs. Suiça e Hermi vs. Itália), as cortes locais devem avaliar concretamente a adequação/qualidade da interpretação que foi realizada e em sendo caso seja constatada a falta de qualidade na comunicação/interpretação, dever-se-á substituir o intérprete.
Já no âmbito interno, por entendimento jurisprudencial, há possibilidade de nomeação de intérpretes não oficiais, sem que haja reconhecimento de nulidade pelos Tribunais. O STJ já reconheceu a validade da nomeação de estagiária de Direito como intérprete durante o interrogatório judicial, uma vez que o acusado limitou-se a negar a autoria (STJ – HC 130485 – rel. Min. Laurita Vaz – j. 02/02/2012) e se fez entender.
Por sua vez, o TRF 3a Região não reconheceu vício no auto de prisão em flagrante por ausência de intérprete, visto que um dos policiais que efetuou a prisão serviu como tradutor para a língua inglesa (TRF 3a Reg. – 11a T. – ACR 00123919220134036181 – rel. José Lunardelli – e-DJF3 18/12/2014).
Não se pode concordar com tal entendimento, uma vez que o intérprete deve ser um terceiro desinteressado com a causa ou, como dito anteriormente, um intermediário neutro entre as autoridades e o acusado, situação inversa a relatada no julgado.
É importante notar que os textos convencionais, diferentemente do art. 193 do Código de Processo Penal brasileiro, preveem a gratuidade como elemento da garantia de assistência à interpretação.
Discussão muito interessante ocorreu no caso Öztürk vs. Alemanha, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em que se determinou o reembolso das despesas gastas com o intérprete, já que a atuação não pode acarretar ônus financeiro ao acusado. Em outra oportunidade (caso Luedicke, Belkacem and Koç vs. Alemanha), aquele mesmo Tribunal internacional dispôs que o termo gratuito relativo à assistência de intérprete deve ser entendido sem nenhuma ressalva para todas as situações e durante todo o curso da tramitação processual.
O TRF 1a Região manifestou-se sobre o tema em recurso interposto pelo Ministério Público Federal em face de sentença condenatória que determinou ao órgão acusatório o pagamento de R$ 1.500,00 ao intérprete. O relator, em seu voto, reconheceu inicialmente que sendo o Ministério Público Federal o autor da ação penal “não é desarrazoado que tome as providências necessárias ao custeio de certas despesas com o seu andamento”, mas considerou a União Federal responsável pelo pagamento, por ser titular do direito de punir visto e haja vista a acusação ser órgão despersonalizado (TRF 1a Reg – 3a T. – ACR 199901000637446 – rel. Olindo de Menezes – j. 02/10/2001- DJ 25/01/2002).
Entende-se que os custos da assistência do intérprete e/ou tradutor nunca podem ser imputados ao acusados, mesmo nas hipóteses em que haja condenação. Para a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso K. vs. França), a garantia é absoluta apenas no seu aspecto financeiro, porque o uso de intérprete deve ser garantido somente quando o acusado não entenda ou fale a língua utilizada pela Corte.
Posicionamento idêntico é encontrado na jurisprudência pátria. Sob o fundamento que o paciente, embora estrangeiro, se expressa normalmente no idioma nacional e possui empresa no país, a 5a Turma do STJ não reconheceu a nulidade pela ausência de nomeação de intérprete, até porque a assistência não foi requerida em nenhuma fase processual, tendo sido a impugnação posterior à sentença condenatória (STJ – 5a T. – HC 34656 – rel. Min. Gilson Dipp –DJ 20/09/2004).
Anos depois, a mesma Corte não reconheceu a nulidade do auto de prisão em flagrante de acusada estrangeira porque tinha “domínio suficiente da língua portuguesa para compreender e fazer-se compreendida, o que dispensa a necessidade de intérprete ou tradutor para a sua lavratura” (STJ – 5a T. – RHC 26080 – rel. Min. Jorge Mussi – DJe 15/12/2009). O mesmo foi decidido mais recentemente pelo TRF 3a Região, já que a acusada estrangeira reconheceu falar e entender bem o português (TRF 3a Reg. – HC 002672669.2012.403.0000 – rel. Vesna Kolmar – DJe 29/10/2012).
Apesar deste entendimento dos Tribunais, a compreensão total do idioma usado na Corte deve ser realmente verificado caso a caso pelo magistrado, sob pena do exercício da defesa não ser realmente garantido.
No caso Amer vs. Turquia, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconheceu que a compreensão parcial do idioma pelo acusado não é suficiente para um julgamento justo, pois o acusado árabe conseguiu se comunicar oralmente em turco com a polícia local, mas não compreendia o idioma na sua forma escrita, portanto, não entendeu a documentação que lhe foi entregue sobre a acusação.
Nota-se que o posicionamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos relativamente à compreensão da língua é mais extensivo que a previsão nacional sobre a assistência de intérprete. O art. 193 do Código de Processo Penal autoriza a realização do interrogatório por meio do intérprete quando o acusado não falar a língua nacional. Infelizmente, nada se menciona sobre efetiva compreensão escrita, o que acarreta dificuldades práticas e necessidade de discussão – como falamos na semana passada – sobre a (des)necessidade de tradução de documentos.
Por último, tem-se discussão sobre a necessidade da interpretação/tradução e comunicação com as autoridades ser na língua natal do acusado. Segundo o STJ, não há tal exigência ou necessidade, sendo apenas preciso que a comunicação ocorra em língua que o acusado compreenda com precisão (STJ – RHC 7229 – rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 19/03/1998). Questão semelhante é encontrada no caso Bronzicek vs. Itália do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, quando se reconheceu que as autoridades italianas poderiam ter se comunicado com o acusado em outras línguas que compreendia (inglês ou francês) além da sua natal.
A conclusão que se chega é que a assistência de intérprete é essencial para que haja efetiva participação do acusado nos atos processuais, visto que somente nestas hipóteses haverá (i) plena ciência da acusação formulada, (ii) ciência de seus direitos, tais como o de permanecer em silêncio, especialmente quando o defensor não conheça a língua do acusado, (ii) possibilidade de comunicação completamente compreensível entre magistrado-acusado-defensor-acusação.
REFERÊNCIAS
[1] TRECHSEL, Stefan. Human Rights in Criminal Proceedings. New York: Oxford University, 2005, p. 328.
[2] DOMENECH, Isabel Perelló. El derecho a ser informado de la acusación. In: GARCÍA ROCA, Javier; SANTOLAYA, Pablo. La Europa de los derechos. El Convenio Europeu de los Derechos Humanos. 2a edição, Centro de Estudios Políticos e Constitucionales: Madrid, 2009, p. 486.
[3] TRECHSEL, Stefan. Human Rights in Criminal Proceedings. New York: Oxford University, 2005. p. 338-339.