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Para que nunca mais se esqueça!

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Comecei a gestar essa coluna, ainda na semana passada, mais precisamente nas madrugadas da terça para a quarta-feira e da quarta para a quinta-feira, enquanto atônita assistia a TV Câmara. Em meio as mais disparatadas falas, eis que carentes de argumentos, constituindo estas, em muitos casos, apenas mera retórica, no seu sentido pejorativo mesmo, de discurso vazio e populista punitivo, na espécie; dei-me conta, não que não soubesse, mas de forma talvez mais clara, da importância do direito à memória e à verdade para a confecção de um presente democrático, embora já tenha assinalado que em termos brasileiros não obtivemos uma ruptura nesse âmbito, contribuindo a isso o fato de que não colocamos à mesa e à discussão o nosso legado autoritário, o qual não nasce com a ditatura militar, mas da história mesmo de formação do Brasil enquanto nação, e tampouco morre com a instauração de uma ordem constitucional democrática, o que bem podemos visualizar na semana passada, a qual nos deu vários exemplos disso.

Pois bem, mas por que me volto a isso? Penso que temos maior facilidade em desprezar aquilo que não vivenciamos e que tampouco conhecemos. Quando já nascemos em uma ordem que se diz democrática de direito, só podemos evocar a memória de algo que não vivemos, através da retenção de conhecimentos que adquirimos e que nos traduzem impressões. Daí a indispensabilidade da discussão como forma de valorização dessas conquistas em termos civilizatórios.

Faço aqui um paralelo com a chamada resolução do pesar, tão bem trabalhada pelos psicólogos e psiquiatras. Tal ocorre com a morte de alguém, pois muitas vezes só resolveremos o nosso pesar daquela perda sofrida com toda a ritualística do enterro ou da própria cremação. Ou seja, precisamos visualizar esse ritual a fim de que internamente possamos concretizar que aquela pessoa que morreu se foi e não mais voltará. Por isso, a importância das Comissões da Verdade, saudadas pela Corte Interamericana de Proteção dos Direitos Humanos, quando trabalha com o direito à memória e à proteção jurídica, o qual abrange esse último, a investigação, o julgamento e o processo, ressaltado no caso brasileiro, na sentença do Caso Gomes Lund e Outros ou ‘Guerrilha do Araguaia’.

Nesse sentido e acerca da referida decisão proferida pela Corte Interamericana, preciosas são as palavras de Giacomolli[1]: “(…) O que o Brasil está tentando, atualmente, é cumprir o reconhecido direito à memória, isto é, não só as famílias dos desaparecidos, mas toda a cidadania possui o direito de saber a motivação dos desaparecimentos, como e por que ocorreram, onde se encontram os restos mortais. O escopo não é o de vindicta, mas o de estabelecer uma aproximação à verdade e evitar que as graves violações de direitos humanos sejam esquecidas, repetidas e juridicamente perdoadas. (…).”

Quando tinha 11 anos de idade li pela primeira vez o Diário de Anne Frank. Uma amiga de minha mãe, professora de escola particular à época, tencionava em me afirmar que o livro seria muito pesado para uma menina da minha idade, pois Anne o escreveu quando tinha 13 anos de idade, no período aproximado de 12 de junho de 1942 a 01 de agosto de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de ser um diário de uma menina de 13 anos de idade, Anne, judia, relatava as suas percepções da guerra e contava o seu dia-a-dia no esconderijo em que morava com a sua família, o qual no ano de 2013, em visita a Holanda eu tive a oportunidade de conhecer.

Posteriormente, quando, então, com 18 anos de idade, ainda recentemente feitos, já na faculdade, portanto, li o livro Brasil: nunca mais, uma importante documentação sobre a história do Brasil, mais precisamente do período que compreende os anos de 1979 a 1985, fase final da ditatura militar no Brasil. A leitura a mim foi impactante, pois o livro se inicia com a descrição dos modos e instrumentos de tortura, desde o pau-de-arara, choque elétrico, a pimentinha e dobradores de tensão, o afogamento, a cadeira do dragão, a geladeira, até o uso de insetos e animais, produtos químicos, lesões físicas, além de outros modos e da descrição da tortura realizada em crianças, mulheres e gestantes. Entretanto, o seu relato não para aí, pois segue discorrendo sobre a origem desse sistema repressivo, a consolidação do Estado Autoritário, a montagem do aparelho repressivo e das suas leis, o perfil dos atingidos, revelando a subversão do direito na formação dos processos judiciais, exemplificando com casos reais, inclusive, para finalizar com a intimidação provocada pela tortura, além dos seus limites extremos. O livro contém ainda uma série de anexos.

Tento com isso evocar as minhas impressões nessa altura, pois penso que a reprodução desmedida de pensamentos punitivos e autoritários dormita no esquecimento, na ausência de uma resolução do pesar de nós brasileiros. Enquanto não evocarmos esse passado para que possamos compreender a importância, a grandeza e a magnitude de se viver em uma democracia, estaremos sujeitos a um projeto governamental de controle que se vende na promessa de segurança e na concretização da vontade de uma maioria.

Por primeiro, então, cabe asseverar, que tal segurança prometida é falsa, por sinal, pois o tempo tratou de quebrar com a segurança, e, embora hoje vivamos mais seguros do que no passado, eis que inclusive vivemos mais, ainda somos inseguros, porque não há certezas, nem a ciência, tampouco a fé em Deus nos deu respostas as nossas maiores angústias, que persistimos nos negando a pensar sobre as mesmas, por isso o uso desmedido de medicamentos, drogas lícitas e ilícitas, compulsões por comida e consumo e etc.

Segundo, no que diz com a concretização da vontade de uma maioria, é interessante observar que as falas relativas à redução da maioridade penal, por exemplo, as quais deram origem a essa coluna, migraram da necessidade de redução da criminalidade, até porque ínfima no âmbito dos adolescentes, sendo estes as maiores vítimas da violência e, também, porque impossível comprovar a correlação entre penas mais altas e severas com a efetiva prevenção de crimes; para a concretização da vontade de uma maioria, aclamada por nossos parlamentares sob o manto de povo.

Entretanto, quem é o povo de que falam os nossos parlamentares? Como sabem eles o que o povo quer e o que pensa? Por intermédio de pesquisas de opinião? O quanto essas pesquisas são fidedignas? Trago aqui as reflexões de Zagreblesky[2] nesse ponto, quando afirma que se deve recusar a ilusão de uma democracia baseada diretamente na voz do povo (já que escreve sobre a crucificação de Cristo e sua relação com a democracia), pois sua forma atual seria a democracia das pesquisas de opinião, o que não é necessariamente a prova de uma democracia.

De acordo com o referido autor: “(…) A pesquisa de opinião pode ser um instrumento útil e lícito da democracia enquanto permanecer no âmbito privado da previsão de comportamentos coletivos. Mas, se ela se tornar instrumento de governo, altera a luta política, jogando nela o povo, e suas supostas orientações, não como sujeito vivente, mas como um corpo morto, uma força bruta à qual se dá e se tira a voz, dependendo daquilo que interessa. Um povo que é capaz de iniciativa política e que sabe usar a própria voz não precisa de pesquisa de opinião. (…).”

Até que ponto a concretização da vontade de uma maioria é democracia mesmo? A condenação de Jesus, conforme evoca o autor, foi realizada pela vontade da maioria do povo, e independentemente de se crer ou não em Jesus, o fato é que uma massa emotiva e irracional clamou pela sua crucificação.

Talvez, então, tudo isso nos sirva a refletir, pois conforme encerra Zagrebelsky: “A multidão que gritava crucifique-o! era exatamente o contrário do que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, era atomística, mas totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva e, portanto, extremista e manipulável… Uma multidão terrivelmente parecida com “o povo” ao qual a “democracia” poderia confiar o seu destino no futuro próximo.”

Tentando retomar a importância do direito à memória e à verdade para a consolidação de uma democracia crítica, na visão de Zagrebelsky, finalizo com o epílogo do livro Brasil: nunca mais.

         “Meu pai contou para mim;

         Eu vou contar para meu filho.

         Quando ele morrer?

         Ele conta para o filho dele.

         É assim: ninguém esquece.”

         (Kelé Maxacali, índio da aldeia de Mikael, Minas Gerais, 1984)

Até semana que vem!

__________

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[2] ZAGREBELSKI, Gustavo. A crucificação e a democracia. São Paulo: Saraiva, 2011.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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