PEC 199/2019 e o impacto no sistema carcerário brasileiro
PEC 199/2019 e o impacto no sistema carcerário brasileiro
O Supremo Tribunal Federal julgou, em 07 de novembro de 2019, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54, que buscavam o reconhecimento da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, no ponto em que dispõe que ninguém será preso, excetuadas as prisões cautelares, senão em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado.
O busílis da questão girou em torno da adequação do dispositivo mencionado para com o art. 5º, LVII, da Constituição da República, onde a Lei Maior diz, taxativamente, que ninguém será declarado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Faz-se, nesse ponto, necessária breve explanação acerca de dois conceitos básicos em Direito e, especialmente, em Direito Penal e Processual Penal. O primeiro diz respeito ao conceito de culpabilidade e sua correlação com a pena. Para que uma pena criminal seja legítima antes é necessário que o Estado se desincumba de seu ônus em comprovar a culpabilidade do agente na prática de determinado crime, ou seja, comprovar a autoria e a materialidade do delito, bem como demonstrar não haver nenhuma causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade que isente o agente de punição.
Assim, por decorrência lógica, a pena pressupõe a formação da culpabilidade para que possa ser aplicada. Sem a formação da culpabilidade, a pena é ilegítima. Segundo, trânsito em julgado significa de que não há mais possibilidade de se recorrer de determinada decisão judicial por ter esta decisão – pasmem – transitado em julgado, ou seja, findo está o processo.
Assim, o conteúdo do art. 5º, LVII, da Constituição, por si só, já é claro o suficiente para afastar a execução provisória da pena, pois, repita-se, a pena pressupõe a culpa e, por sua vez, a culpa pressupõe o trânsito em julgado e, por fim, a Lei Maior assim discorre, em cláusula pétrea, portanto, imutável. Em outras palavras: é juridicamente impossível (ou ao menos deveria ser) que a pena de prisão possa ser executada antes de que tenham terminados todos os recursos interpostos pelo réu.
Superada essa questão, retornamos ao julgamento das ADCs.
Ora, sendo o texto do art. 283 do CPP de conteúdo praticamente espelhado ao do art. 5º, LVII, da Constituição, a discussão fugiu da seara jurídica, local a que naturalmente pertence, e extrapolou para o campo da política criminal, ainda que de uma política criminal tacanha e anticientífica, vide os dados equivocados e descontextualizados trazidos para a discussão pelo Ministro Roberto Barroso em seu voto.
Entretanto, apesar das divergências entre os ministros da Corte e do placar acirrado, prevaleceu o entendimento de que o art. 283 do CPP está em consonância com a Constituição, ou seja, não a viola. Por óbvio, este entendimento despertou na ala punitivista do Congresso Nacional e em grande parte da sociedade civil, sentimento de indignação ante a iminência de um fantasioso estado de impunidade que reinaria no país caso as sentenças condenatórias não fossem automaticamente executadas após a manutenção da execução provisória das penas. A resposta foi, então, imediata.
Dois meses após o julgamento pelo STF, já tramitam duas proposições legislativas no Congresso Nacional buscando alterar o momento em que a sentença penal seria executada. A primeira proposição trata-se do Projeto de Lei nº 166/2018, que busca alterar o Código de Processo Penal, alterando o art. 283, para que a sentença penal condenatória seja executada a partir da prisão em segunda instância.
Infértil, entretanto, a proposta, pois esquece-se de que a presunção de inocência até o trânsito em julgado consta em cláusula pétrea na Constituição e, portanto, a mera modificação na legislação ordinária não surtiria efeito algum, apenas movimentaria novamente o Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo, tendo em vista a Constituição ser hierarquicamente superior ao Código de Processo Penal.
A PEC 199/2019, por seu turno, modifica os arts. 102 e 105 da Constituição, que disciplinam os recursos extraordinário e especial, oponíveis ao STF em caso de o acórdão violar a Constituição, e ao STJ em caso de acórdão violar lei federal, respectivamente. Na modificação proposta, esses recursos seriam extintos e em seu lugar seriam criadas ações autônomas, ou seja, não havendo mais a possibilidade de recursos para a instâncias superiores, o processo estaria terminado tão logo estivessem esgotados os recursos em segundo grau de jurisdição.
Caso o acórdão proferido pelo órgão de segunda instância violasse a Constituição ou lei federal seriam oponíveis, segundo a proposta, ações autônomas – ou seja, novo processo – para a discussão da controvérsia. Assim, o trânsito em julgado passaria a ocorrer logo estivessem esgotados os recursos em segunda instância e, portanto, a execução da pena deixaria de ser provisória e passaria a ser definitiva e, o mais importante de tudo, constitucional.
Mas, como advertiu o jornalista americano H.L. Mencken:
Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.
O Brasil conta, atualmente, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, com 812 mil presos, sendo que 41,5% sequer ostenta condenação criminal, ou seja, quase metade da população carcerária brasileira é composta por presos provisórios.
Além do espantoso número de presos em solo nacional, o déficit de vagas é de aproximadamente 354 mil, ou seja, o sistema carcerário brasileiro, (precariamente) estruturado para abrigar cerca de 500 mil presos já abriga uma população carcerária 70% maior do que a sua capacidade. Além disso, considerando-se os mandados de prisão ainda não cumpridos, caso o fossem, a população carcerária brasileira ultrapassaria 1 milhão de presos.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, inclusive, como Estado de Coisas Inconstitucional, através do julgamento da ADPF nº 347, o sistema carcerário brasileiro, em decorrência das condições desumanas a que são submetidos os presos, consequência, primordialmente, da superpopulação.
Além da questão humanitária, há, ainda, a financeira: o déficit público brasileiro, segundo o Ministério da Economia, tende a ser ligeiramente menor do que R$ 80 bilhões. A manutenção de presos no sistema carcerário brasileiro custa, aproximadamente, R$ 2.000,00 mensais (!) por pessoa encarcerada, chegando a custar até R$ 4.800,00 em instituições prisionais federais.
Somado a isso, o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, em 2017, estimou que seriam necessários pelo menos R$ 11 bilhões apenas para suprir as vagas faltantes à época. Esse valor, hoje, dado o crescimento da exponencial da população carcerária e a necessária correção monetária do montante apresenta-se ainda mais elevado.
Portanto, é virtualmente impossível, sob os pontos de vista estrutural e orçamentário, que o Estado invista em mais medidas encarceradoras, sob pena de colapsar completamente o sistema prisional.
Dessa forma, a PEC 199/2019, ainda que juridicamente adequada, traz em seu âmago um horizonte de consequências com potencial catastrófico para o sistema carcerário brasileiro, já precário ao extremo, potencializando ainda mais seu o inevitável colapso. Colapso este já percebido em diversos estados, como no Rio Grande do Sul, onde presos já chegaram a ser algemados em lixeiras e viaturas dada a falta de vagas no sistema prisional e a superlotação das delegacias de polícia.
Sempre importante lembrar, no entanto, aos alarmistas da “impunidade” que ainda existe no Brasil o instituto da prisão preventiva, (ab)usado em demasia, conforme os dados trazidos, chegando a atingir quase a metade dos detentos do país.
Importante frisar, também, que os recursos especial e extraordinário não visam unicamente reconhecer a inocência de acusados condenados em violação da Constituição ou de lei federal, mas também prezar pela devida aplicação da pena, resultando, assim, em modificações de condenações que refletem no regime inicial de cumprimento da pena.
No processo penal, diferentemente do processo civil, a execução antecipada da pena não é possível de ser efetivamente revertida caso o acórdão prolatado em segundo grau seja modificado pelas instâncias extraordinárias em benefício do réu, pois o tempo preso injustamente ou em regime mais gravoso do que aquele que seria legalmente previsto não será devolvido ao indivíduo, que terá de aguardar o resultado dessas ações autônomas por meses ou anos enclausurado para não receber, em caso de modificação do acórdão, sequer o reconhecimento formal por parte do Estado do erro judicial.
Portanto, apesar de o discurso seduzir e a resposta trazida ser constitucionalmente adequada, não podemos nos deixar enganar: a não ser que o Estado brasileiro acorde no dia 1º de janeiro de 2020 com a sua dívida pública quitada, com seu caixa abastecido e presídios tenham surgido magicamente em solo nacional, desejar para o Ano Novo o “fim da impunidade” através da prisão após o julgamento em segunda instância constitui não apenas pensamento mágico, mas uma irresponsabilidade da qual não podemos nos dar ao luxo, sob pena de aumentarmos e retroalimentarmos ainda mais o ciclo da violência, fornecermos material humano ilimitado para facções e, por fim, mas não menos importante, dilacerarmos qualquer sentido daquilo que se possa conceber como dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
Relatório de Gestão Supervisão do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas – DMF. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
Contas públicas devem fechar 2019 com rombo abaixo de R$ 80 bi, diz Guedes. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
Prender mais e manter preso: o custo da proposta de Bolsonaro para a segurança. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
Depen: seriam necessários R$ 11 bilhões para suprir deficit em presídios. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
Presos são algemados em lixeira após horas dentro de viatura no RS. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
Da rua à cadeia: traficante fica seis dias algemado em viatura até obter vaga no sistema prisional do RS. Disponível aqui. Acesso em: 19 dez. 2019.
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