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Pela “revisão” da Lei de Anistia

Por José Carlos Moreira da Silva Filho

Quando foi editada e promulgada a Lei nº 6683/1979 o Brasil ainda estava mergulhado em uma ditadura. Perseguições políticas, torturas, mortes, desaparecimentos, atentados à bomba, exílios, censuras e restrições autoritárias da liberdade continuavam a ocorrer sob o patrocínio do Estado e suas autoridades. O Congresso que debateu a Lei de Anistia e a aprovou havia sido fechado em 1977 com base no AI-5 pelo ditador Ernesto Geisel e havia passado por uma reformulação estrutural (cassações e mudança das regras de composição, que passaram a favorecer ainda mais a Arena, e a instituição de 1/3 de senadores biônicos). Sobre a possibilidade de se apurar e investigar os crimes praticados pela ditadura não havia qualquer possibilidade de acordo, como reconhecem hoje muitos protagonistas da época. Apenas de modo jocoso se pode referir à anistia de 1979 como um acordo. Seria “o acordo da corda com o pescoço”. A margem de manobra das forças de oposição à ditadura era muito restrita e controlada, estando já aquela altura toda a resistência armada e boa parte da resistência não armada na prisão, no exílio, morta ou desaparecida. Era interesse da própria ditadura realizar naquele momento histórico uma abertura controlada e que garantisse a impunidade dos torturadores e seus mandantes e cúmplices.

Reestabelecido o Estado de Direito com a Constituição de 1988 não se vê nesta nenhuma referência à anistia de crimes conexos ou a qualquer outra expressão vaga que pudesse ser entendida como anistia aos crimes da ditadura. A anistia da Constituição de 1988, segundo reza o Art.8º do ADCT é para os que foram perseguidos políticos e não para os que promoveram a perseguição em nome do Estado. Em seu Art.5º, XLIII a Constituição prevê que a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Quanto ao argumento de que a EC Nº 26/1985 limitou a soberania da Constituinte pois além de convocá-la reafirmou os termos da anistia de 1979 (mas sem reproduzir a capciosa definição do que seriam crimes conexos), não resiste a uma aula básica de Direito Constitucional, na qual se sabe que a Constituinte é soberana e detém o poder originário no estabelecimento da nova ordem político-jurídica. Seria mesmo um contrassenso e uma verdadeira afronta aos princípios e valores democráticos e humanistas da Constituição de 1988 querer limitá-la ou atrelá-la à ordem constitucional autoritária da ditadura.

Ademais, é preciso reconhecer que aos olhos da ordem democrática o que a ditadura considerava como “crimes políticos” era na verdade o exercício do direito de resistência e que os crimes praticados pela ditadura não eram crimes comuns, políticos ou conexos, mas sim “crimes contra a humanidade”. Conforme ensina Heleno Cláudio Fragoso[1], o crime político só deveria ser admitido quando a ação que investe contra o Estado e suas instituições é voltada a um Estado democrático que é comandado por um governo legítimo. Quando o Estado é ilegítimo e opressor, quando se trata de uma ditadura que como política de Estado viola sistematicamente os direitos mais básicos dos seus cidadãos, as ações contrárias ao Estado não são um crime, mas o legítimo exercício do direito de resistência à tirania. A ordem constitucional instaurada em 1988 no país reconhece isto quando em seu artigo 5º, XLIV registra que: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.

Por outro lado, se as ações de oposição à ditadura, mesmo as armadas, não configuram crime político à luz da ordem democrática, os crimes praticados pelos agentes públicos a serviço do Estado ditatorial não são nem crime político nem crime comum, nem conexo, mas sim crimes contra a humanidade. A definição jurídica dos crimes conta a humanidade existe na ordem internacional, da qual o Brasil faz parte, desde pelo menos o Tratado de Londres de 1945, restando sua imprescritibilidade firmada pelos costumes e tratados internacionais, e estando amplamente amparada pelo chamado jus cogens. Afora as obrigações jurídicas internacionais de ordem geral e normativa às quais se vincula o Estado brasileiro, pende sobre ele uma condenação jurídica internacional, envolvendo em suas determinações todos os três poderes da República, estabelecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Gomes Lund), jurisdição à qual o Brasil voluntária e soberanamente se vinculou, e que afirma categoricamente que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos”.

Não se trata assim propriamente de uma “revisão” da Lei de Anistia, mas sim da sua “interpretação correta” sob a ordem constitucional instaurada em 1988 e  as obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro.

Por fim, é preciso registrar que além da importância jurídica da responsabilização penal dos agentes da ditadura, há também a sua relevância simbólica e institucional. É preciso dizer um basta à violência e à prática disseminada da tortura, ou de qualquer outra grave violação de direitos humanos praticada pelo Estado, um ente desproporcionalmente mais poderoso que qualquer cidadão ou grupo da sociedade civil e que possui como missão a tarefa de protegê-los e não a de incestuosamente persegui-los e massacrá-los. Não se pode transigir com a prática de crimes contra a humanidade, sabendo que mais relevante que a punição a ser aplicada é o dever de levá-los a julgamento e de responsabilizar os seus agentes, ainda que tardiamente.


[1] FRAGOSO, Heleno. Terrorismo e criminalidade política. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
JoseCarlosImagem do Post – Fotografia de Evandro Teixeira

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