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Pelo fim de dois pesos, duas medidas


Por Vilvana Damiani Zanellato


Para finalizar o debate sobre a 3ª Medida contra a Corrupção, cujo Anteprojeto traz normas que aumentam o preceito secundário com relação a alguns crimes contra a Administração Pública (veja aqui), bem assim eleva certas condutas à categoria de hediondo (veja aqui), cabe cuidar, ainda, quanto à coerência de tratamento pertinente a determinados delitos que estão previstos em leis esparsas, mas que, em sua essência, são idênticos (ou mais graves que) às infrações constantes da parte especial do Código Penal.

É o que ocorre com o art. 3º da Lei nº 8.137/90 e o art. 1º, inciso I, do Decreto-lei nº 201/67.

No primeiro dispositivo, a proposta exclui o inciso II, que traz em seu bojo a prática do crime de corrupção específica quanto a tributos[1]. A pena privativa de liberdade cominada, atualmente, é de 3 a 8 anos de reclusão. No segundo[2], que cuida do crime de peculato praticado por prefeito municipal, há revogação expressa. Mas qual o sentido dessas alterações quanto ao combate à corrupção se ambos retiram condutas da legislação em vigor?

A justificativa do Anteprojeto, bem explica o que muda com referida ideia. Vale conferir:

“A proposta não suprime o crime de corrupção praticado no contexto tributário ou o crime de peculato praticado por prefeito, mas apenas suprime sua regulação especial pela Lei 8.137/90 e pelo Decreto-Lei 201/1967. Com a alteração proposta, a corrupção praticada no contexto tributário e o peculato de prefeito passam a ser previstos e punidos diretamente pelo Código Penal. Isso evita regulações adicionais e desnecessárias, bem como a necessidade de reproduzir na lei especial a gradação da pena da corrupção segundo o proveito econômico, que foi proposta no âmbito do Código Penal. A previsão especial, aliás, tende a gerar distorções a longo prazo. Projetos em trâmite no Congresso, que tornam hediondos a corrupção e o peculato, por exemplo, sequer mencionam esses tipos penais, o que tornaria hedionda a corrupção e o peculato na forma geral e não a corrupção no contexto tributário e o peculato praticado por prefeito. Isso, por si só, já seria ilógico, mas se torna mais aberrante se percebermos que tradicionalmente esses crimes especiais têm uma pena maior do que o crime de corrupção em geral. Uma vez que não há razão para privilegiar auditores-fiscais ou prefeitos que cometem crime de corrupção, é proposta a supressão nesses artigos” (destacaram-se).

Acresça-se, à lúcida justificativa, que o tratamento isonômico com relação ao servidor público que atua na área tributária e os demais agentes públicos que se enquadram na dicção do art. 327 do CP vem a desmistificar a ideia de que o crime de sonegação fiscal propriamente dito é a mera inadimplência com o fisco. O tipo disposto no atual art. 3º da Lei nº 8.137/90 prescreve que o não pagamento do tributo, no caso, ocorre mediante elisão, vale dizer, por meio de ato ilícito (corrupção) e não apenas pela omissão de pagamento, como muitos defendem e entendem não dever compor o rol das condutas penalmente tipificadas. Enfim, não há que se confundir a simples dívida tributária com os tipos penais previstos em nosso ordenamento jurídico porque normalmente ocorrem mediante falsidades, fraudes etc. praticadas geralmente por auditores-fiscais que, lamentavelmente, envolvem-se entre corruptos (corrompidos e corruptores).

No mais, efetivamente não faz nenhum sentido deixar que se perpetue legislação especial para fins de mitigar situações que se crê serem bem mais gravosas que os tipos delineados na parte especial do Código Penal, a saber: (1º) crime praticado por agente público, que tem o dever de fiscalizar a licitude das satisfações tributárias; e (2º) crime praticado por prefeito municipal, que tem o dever de gerir a municipalidade nos moldes constitucionalmente determinados pelo art. 37, atendendo aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Não há razão para que se continue a aceitar – especialmente no âmbito da legislação – a prática de “dois pesos, duas medidas”[3].


NOTAS

[1] “II – exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa”.

[2] “Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores: I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio; (omissis) §1º Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos”.

[3] “Não carregueis convosco dois pesos, um pesado e o outro leve, nem tenhais à mão duas medidas, uma longa e uma curta. Usai apenas um peso, um peso honesto e franco, e uma medida, uma medida honesta e franca, para que vivais longamente na terra que Deus vosso Senhor vos deu. Pesos desonestos e medidas desonestas são uma abominação para Deus vosso Senhor” (Bíblia Sagrada, livro de Deuteronômio 25:13-16)

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Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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