Pena e tempo
A privação de liberdade que atinge o corpo também atinge o “espírito” do apenado. Espírito como consciência. Consciência posta especialmente no tempo. Privação de liberdade: espaço e tempo, em essência.
O tempo que cerceia a liberdade substitui os espetáculos modernos dos ventres abertos e expostos, das entranhas dilaceradas em praça pública, dos açoites, esquartejamentos e decapitações, e mesmo da forca e da guilhotina (ou, ainda mais tarde, da cadeira elétrica, do fuzilamento e da injeção letal – outro espetáculo), de todos aqueles cerimoniais que muito mais exemplificavam do que puniam o condenado.
Refletir na prisão sobre o seu feito e sua vida é um primeiro argumento. Assim surge o tempo como operador de pena, como metro (medição: espaço?) da liberdade, como controle de expectativa de vida em sociedade, a sociedade de onde o criminoso foi expurgado para um [novo] aprendizado de convívio social, ao qual ele não estava preparado antes do tempo do crime.
É nessa circunstância e sob essa justificativa que a detenção ou o encarceramento se torna o principal expediente de pena.
Aqui, a arquitetura ultrapassa os ditames do espaço e atinge o tempo, visceralmente. A jaula não é só espaço. É tempo: de espera, de ócio, de intervalo, de procedimento.
Horário certo e previamente definido para acordar, para comer, para sair, para voltar, para comer, para dormir. Jaulas, corredores e pátios fazem do espaço o tempo da nova arquitetura.
O aprendizado também custa tempo. Afinal, é necessário aprender (ou reaprender) as regras, o contrato social, e é necessário aprender (ou reaprender) a se submeter à ordem, à autoridade, à disciplina.
Essa é uma verificação deveras foucaultiana, e ainda extremamente válida dentro de uma perspectiva de controle que declina o precioso conceito de poder disciplinar.
Era assim que Foucault referenciava o tempo na estrutura de poder, máxima utilizada nas prisões, nas fábricas, nas escolas: “o poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização” (em Vigiar e Punir). Mais propriamente:
[prisão]… que ela pareça com uma reparação. Retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a ideia de que a infração lesou, mais além da vítima, a sociedade inteira.
Obviedade econômico-moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos-duração.
Daí a expressão tão frequente, e que está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem que contrária à teoria estrita do direito penal, de que a pessoa está na prisão para “pagar sua dívida”. A prisão é “natural” como é “natural” na nossa sociedade o uso do tempo para medir as trocas. (Vigiar e Punir, pp. 224-225).
Depois disso, vem o isolamento e o trabalho. Outros aspectos e racionalidades de expiação que, igualmente, se propagam no tempo.
O tempo trabalhado, por exemplo, retira uma parcela de pena (ao “custo” de metade da hora-trabalho ao preso, comparativamente ao cidadão livre). Muito embora também se desenvolva, mesmo no campo da Economia Política, em aspecto temporal – quando a hora-trabalho depende de regras de jornada em sistemas de produção – esse é um tema que merece abordagem independente, notadamente à luz de um clássico da criminologia crítica: Cárcere e Fábrica, de Melossi e Pavarini. Fica para uma outra oportunidade.