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Pena e tortura: passado ou presente?

A tortura é parte integrante da sociedade ocidental desde os seus primórdios, embora ao longo dos anos tenham se alterado em alguma medida os métodos e mesmo os propósitos da prática.

Inicialmente, a tortura parecia possuir um fim em si mesma, ao ser empregada como pena para os mais diversos crimes. Exemplo disso é a cena inicial de Vigiar e Punir, de Michel Foucault (1975), que retrata o suplício, ou seja, a punição corporal de um homem pelo crime cometido, a qual, por suas características relacionadas à inflição de dor e sofrimento, pode ser entendida como tortura. Outro exemplo, mais amplamente compreensível, é o de Jesus Cristo, que teve como pena a crucificação.

A imposição de sofrimento e de dor física era entendida, em geral, nesses contextos em que se revelava como principal forma de punição empregada na sociedade, como técnica de expiação da culpa, purificação da alma e exclusão dos pecados.

Nesse sentido, não há exemplo mais acurado que o da pena de morte por meio da fogueira que se impunha às pessoas acusadas de bruxaria durante o período em que funcionou a Inquisição.

Cabe ressalvar que não se pode afirmar que a imposição de tortura como pena em si seja exclusividade de sociedades menos desenvolvidas e vinculadas à mitologia ou à religiosidade.

Essas penas se transferiram para a sociedade moderna de maneira sutil, com discursos não mais relacionados à expiação da culpa, mas eminentemente utilitaristas, e tomaram a forma de práticas como a execução de condenados à morte por meio da cadeira elétrica ou do enforcamento.

Entretanto, é notável que a tortura deixou de ser majoritariamente entendida como pena e assumiu outra função, tendo por propósito a extração de informações relevantes de indivíduos que não demonstram disposição a cooperar.

Essa outra função, destaca-se, tampouco é uma criação moderna, mas vem se desenvolvendo em conjunto com as punições através do sofrimento desde os momentos iniciais da civilização ocidental.

Prova disso é que, ao se pensar em tortura, em geral o senso comum é remetido às imagens dos aparelhos utilizados durante a Inquisição.

Esse período contou com um elevado grau de sofisticação metodológico e tecnológico no que diz respeito à tortura, sendo nele desenvolvidos inúmeros métodos e aparelhos para aplicá-los, muitos dos quais continuam sendo utilizados.

A tortura no Medievo possuía o duplo propósito de se obter a confissão da pessoa acusada de algum crime ou heresia, e sua cooperação na forma da delação de seus colaboradores.

Em termos quantitativos, os registros da época revelam que essa era uma prática eficaz, pois a imensa maioria dos procedimentos de interrogatório por meio da tortura resultava, em algum momento, na obtenção das informações desejadas – tanto no que se refere à confissão quanto ao apontamento de outros criminosos.

Qualitativamente, contudo, esses resultados são amplamente questionados atualmente, pois se entende que muitas dessas confissões e delações não condiziam com a realidade.

Acredita-se, hoje, que o que ocorria nessas práticas medievais era que em algum ponto, a pessoa torturada, ainda que fosse inocente, diria qualquer coisa que seus torturadores quisessem ouvir para fazer com que seu próprio sofrimento cessasse.

Mesmo com esse entendimento, a tortura segue sendo empregada na busca de informações. Mais recentemente, passou-se a adotar, na maioria dos países ocidentais, o entendimento de que a confissão obtida por meio de tortura não pode ser aceita, pois sua veracidade é amplamente questionável.

Ainda assim, métodos de imposição de dor e sofrimento se mantêm aceitáveis para obter informações diversas da confissão.

A mais ampla divulgação dessas práticas diz respeito àquelas adotadas pelos Estados Unidos na chamada Guerra contra o Terror, iniciada após os atentados de 11/09/2001.

A partir de tal marco temporal, o Terrorismo passou a ser entendido como a maior ameaça global, e a sociedade civil ocidental facilmente aceitou que para combatê-lo seria admissível o emprego de força e violência estatal em maior intensidade do que a empregada no combate a crimes comuns.

Dessa forma, grande parte da população norte-americana passou a considerar aceitável a aplicação das chamadas técnicas avançadas de interrogatório a pessoas acusadas de serem terroristas.

A lógica que se emprega é a de que os direitos dessas pessoas devem ser relativizados em nome da proteção da coletividade, e que se a informação obtida pode salvar vidas, é irrelevante a forma pela qual se a obteve.

Apesar de serem as ações militares norte-americanas as mais reconhecidas, a prática da tortura como forma de obtenção de informações se reproduz em diversos outros países ocidentais.

No Brasil, por exemplo, é prática comum o emprego de violência policial, envolvendo desde espancamentos e humilhações à asfixia, para obtenção de confissões informais e, principalmente, de informações quanto a práticas criminosas.

É a realidade retratada em filmes como Tropa de Elite (2007), mas também constatada em delegacias de polícia civil espalhadas pelo país, mesmo quando os delitos imputados à pessoa torturada não tem nenhuma ligação com o chamado crime organizado, e até quando são aqueles de “menor potencial ofensivo”.

É evidente, portanto, que a eficácia da tortura é tomada como pressuposto, e que sua prática, ainda que oficialmente condenada, é amplamente aceita pela sociedade. O que se faz necessário ressaltar, nesse contexto, é que a mesma premissa alardeada quanto às práticas inquisitoriais é aplicável às atuais.

Da mesma forma que as chamadas bruxas, as pessoas hoje submetidas a tortura tendem a fornecer a seus algozes qualquer informação que pareça a desejada somente para fazer cessar seu sofrimento. Assim, mesmo que não se trate de confissão, a veracidade de qualquer informação obtida desse modo é amplamente questionável.

É essa a tese exposta por ShaneO’Mara no livro “Why torture doesn’twork”, que foi objeto da entrevista “Tortura não Funciona”, publicada pelo jornal Gazeta do Povo na edição semanal referente ao período de 05 a 11 de agosto de 2017.

Não se justifica, portanto, a manutenção da prática da tortura de um ponto de vista lógico ou racional, pois não se pode confiar verdadeiramente em nenhuma informação que dela decorra.

Assim, trata-se da imposição de sofrimento a seres humanos sem nenhuma justificativa ou propósito, e a aceitação social da prática apesar disso revela um profundo sadismo intrínseco ao corpo social. Ainda que seja algo socialmente aceito, revela-se dessa forma a urgente necessidade de abolição dessas práticas em um país democrático.


Assina este texto: Susan Squair

Iuris Trivium

Grupo de simulação, pesquisa e extensão em Tribunal do Júri (UFPR)

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