Pensar, aprender e transmitir Direito Processual Penal
Por Nereu José Giacomolli
A evolução do sistema educativo “vai ser um dos principais desafios do século XXI”, afirma Goéry Delacôte, ex-diretor do Exploratorium de São Francisco (Delacôte, 2000, p. 292). Roberto Carneiro, membro da Comissão Internacional para a Educação no Século XXI, assevera que “podemos distinguir quatro maneiras de aceder ao saber: por um lado, ‘saber o quê’, e ‘saber o porquê’, de acordo com as formas tradicionais da aprendizagem e, por outro lado, ‘saber quem’ e ‘saber como’, que enriquecerão os métodos tradicionais através da experiência e do relacionamento com o mundo concreto”, destacando os quatro pilares da Comissão Delors: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a estar e aprender a viver em conjunto (Carneiro, 2000, p. 299 e 301).
O processo penal, assim como as demais áreas do Direito, passou a ser transmitido de forma compartimentada, fragmentada, mediante uma metodologia eminentemente expositiva e acrítica (reprodutora do estabelecido, de sentido), analítica e linear, sem integração com a práxis, com os demais saberes, com o conhecimento e com a experiência dos discentes. Os encontros circunscrevem-se aos limites de uma sala, de uma faculdade. O conteúdo restringe-se aos programas espelhados no Código de Processo Penal, passado ao aluno e avaliado mediante provas programadas, não raras vezes de assertivas certo ou errado, verdadeiro ou falso, sim ou não. A responsabilidade é compilatória, certificada na perspectiva do dever cumprido, desde que o armazém da memória do aluno seja preenchido. Porém, a concepção de Montaigne ainda tem relevância: “mais vale uma cabeça bem feita, do que bem cheia”.
A transmissão do direito processual penal transformou-se em monólogo inaudível e de parca absorção nos auditórios jurídicos. Isso porque se trata de uma transmissão fragmentária e desvinculada do contexto, mormente dos Diplomas Internacionais, da Constituição Federal, do Direito Penal, do jogo de poder incorporado pelos sujeitos, bem como da casuística da realidade fática universal e local. Vários anos de fragmentação, de instrumental meramente expositivo e de ausência de uma tecitura dos vários ramos do direito e do conhecimento afastaram a necessária ligação das partes, evidenciando a árdua tarefa de compreender e situar o fenômeno processual na sociedade e no mundo jurídico. Por ser tratada a unidade (processo penal), de forma desvinculada da diversidade e da universalidade (direito e demais ramos do conhecimento), emergem problemas de difícil transposição e solução, potencializados pela carência de vínculos relacionais entre os diversos elementos do complexo jurídico e vital. A metodologia arcaica, ou seja, de mera transferência de informações parcamente memorizadas, de necessidade de acúmulo e armazenamento, unidirecionadas verticalmente (professor-aluno), sem possibilidades de questionamentos no plano horizontal (aluno-aluno) e contributivo (aluno-professor), dificulta a transformação da informação em significado, afastando as possibilidades de apropriação, assimilação e incorporação do conhecimento, produzindo desinteresse na aprendizagem.
Muitos são os desafios. Alguns, para pensar e debater:
1) compartilhamento das responsabilidades professor-aluno;
2) perspectiva do professor como auxiliar no desenvolvimento cognitivo crítico e sistemático, criador de possibilidades cognitivas à auto-aprendizagem e à auto-organização intelectiva e volitiva;
3) utilização e desenvolvimento das novas tecnologias pelos docentes e discentes, em rede, no processo ensino-aprendizagem (videoconferência, acesso a bases de dados doutrinários e jurisprudenciais, comunicação on-line entre professores e alunos através de ferramentas eletrônicas, v.g.);
4) superação da redução metodológica à exposição docente; 5) integração docente e discente da graduação com a pós-graduação;
6) avaliação recíproca docente-discente, com decisões sérias acerca dos resultados apontados;
7) declaração do “saber” à construção e desenvolvimento do saber;
8) evoluir do escrito e da linguagem vocal à representação por imagem integrada em áudio e vídeo;
9) integração dos avanços da arte (cinema, teatro, literatura, música, pintura, v.g.) no processo ensino-aprendizagem do processo penal;
10) continuidade da interatividade e não clausura do processo-ensino aprendizagem à temporalidade da graduação e ao espaço da faculdade ou universidade (necessidade de criação de “antídotos contra a desaprendizagem” – Roberto Carneiro);
11) superação da verticalidade na direção de uma horizontalidade dialógica transparente, lúcida, explícita entre professor-aluno;
12) reconhecimento da diferença e da desigualdade na relação professor/aluno e aluno/aluno e saber compatibilizá-las;
13) utilização de todas as formas de aprendizagem que permitam acessar, analisar e avaliar (Tapio Varis);
14) integração da comunicação analógica com a digital;
15) utilização de todos os sentidos cognitivos e analíticos e afetivos (Tapio Varis);
16) funcionalidade construtiva do aluno enquanto ser humano e integrativa de todos na cidadania.
Não é demasiado lembrar que o conhecimento e o saber não podem ser confundidos com mera comunicação e informação e nem com sua velocidade dos teleteaching, dos web-training e de todos os mecanismos de contato imediato. Quiçá os maiores desafios estejam na conscientização da problemática, no querer avançar e progredir, bem como na incorporação do reconhecimento valorativo do ser humano, em todo o processo de desenvolvimento da cognição. O processo ensino-aprendizagem há de forjar possibilidades de contextualização das realidades particulares e singulares e, concomitantemente, de “concretizar o global, de por o global em relação às partes”, pondo de releve a condição humana, o saber viver e a formação de cidadãos (Morin, 2000, p. 287). Nesse sentido há de ser organizado o paradigma metodológico, na medida da constatação do esgotamento da programação reducionista da acumulação de conhecimento.
Situação também preocupante diz respeito à situação de último plano no ensino do processo penal, em alguns semestres, diferentemente do que ocorre com o processo civil e o próprio direito penal. Esta inferioridade é histórica. Carnelutti já alertava o grau de inferioridade com que era tratado o direito processual penal em relação ao direito processual civil e ao próprio direito penal, inclusive nos planos de ensino (dois semestres ao processo penal) e em sua nomenclatura (direito processual civil e processo penal), o qual se contenta em usar as roupas usadas e abandonas por suas irmãs, o direito penal e o processo civil (Carnelutti, 1960, p. 15 a 21). Um século depois, a situação pouco mudou e segue a preocupação maior com o ter em relação ao ser. Quantos semestres são dedicados ao direito processual civil e quantos ao direito processual penal? Estuda-se uma teoria geral do processo que, na realidade, é uma teoria geral do direito processual civil. Muito além da secura da dogmática, da técnica do processo penal, o processo ensino-aprendizagem há de priorizar o ser humano, em qualquer disciplina e não olvidar
o que já ensinava Rousseau: “quero ensinar-lhe a condição humana”. A construção de comunidades autênticas e éticas, moralmente comprometidas na formação do ser humano e da cidadania (formação de cidadãos) é um dos desafios do processo ensino-aprendizagem.
REFERÊNCIAS
AAVV UNESCO. As Chaves do Século XXI. Lisboa. Instituto Piaget, 2000.
CARNEIRO, Roberto. “A educação para todos, ao longo da vida e os novos programas”, em AAVV. UNESCO. As
Chaves do Século XXI. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 298-302.
CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Buenos Aires: Libreira del Puerto, 1960.
DELACÔTE, Goéry. “Educação à distância, novas tecnologias e novos métodos de aprendizagem”, em AAVV UNESCO. As Chaves do Século XXI, UNESCO. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 292-297.
MORIN, Edgar. “Reforma do Pensamento e da Educação no Século XXI”, em AAVV. UNESCO. As Chaves do Século
XXI”. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 287-291.
PÉREZ TORNERO, José Manuel e VARIS, Tapio. Media Literacy e New Humanism. Federação Russa, 2010. UNESCO ZOLO, Danilo. Globalizzazione.Una Mappa dei Problemi. Laterza: 2004.
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
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Publicado originalmente no Boletim Informativo IBRASPP, v. 07, p. 24-26, 2014.