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Peritos e juízes: tão perto, mas tão longe!

Peritos e juízes: tão perto, mas tão longe!

A troca de conhecimento (ou, pode-se dizer, de informação) é, sem dúvida, uma das características mais complexas do ser humano. Não é à toa que uma das peculiaridades que possuímos frente aos outros animais é a possibilidade de expressar o conhecimento/informação para que outro aprenda e reflita com isso. E quando falo em conhecimento digo não só em relação ao conteúdo intelectivo obtido durante os anos.

Refiro ao conhecimento prático, diário, de vida. Saliento isso, pois poder-se-ia ter definido a comunicação como uma das características mais complexas dos seres humanos. Mas não há a menor dúvida de que todos os animais possuem a capacidade de se comunicar. A comunicação é uma das formas de sobrevivência, seja ela realizada da maneira que for. O que realmente nos diferencia é a possibilidade de trocar o conhecimento (como atualmente conhecemos, pela vocalização de vernáculos) e de refletir. É sermos dotados de uma mente que calcula, e uma mente que medita.

Dentro do fenômeno da troca de informação, uma das maiores dificuldades é fato de fazer-se entender. Quando um interlocutor emite uma informação para um ouvinte, este interpreta o que aquele falou. A interpretação de quem está ouvindo é diretamente relacionada à capacidade que o interlocutor possui de fazer-se entender.

Ou seja, não só é preciso externalizar o conteúdo, como também é preciso transmitir a informação de maneira que aquela pessoa que está escutando compreenda a mensagem que foi passada. E isso, em uma sociedade onde a capacidade interpretativa e reflexiva tem-se demonstrado tão frágil, é, sem dúvidas, um dos maiores desafios a ser enfrentado. 

É justamente esse um dos pontos cruciais na troca de informações entre os peritos e os juízes. E aqui cabe uma ressalva: muito embora o principal personagem aqui trazido seja o juiz, já que a prova pericial é produzida para auxiliar no conhecimento do magistrado, sem a menor dúvida o debate pode ser extrapolado para todos os aplicadores do direito que estão inseridos no contexto (pré)processual (delegados, advogados, promotores, etc). O modo como a prova pericial é levada ao tribunal é o que guia o nosso debate de hoje.

Sabe-se que, fundamentalmente, o conhecimento do perito localiza-se em um plano do conhecimento diametralmente oposto ao dos juízes. Quer dizer, o conhecimento do perito é técnico, direto, científico e analítico, aplicável pela metodologia científica de duplas hipóteses. É um conhecimento mais exato, que abrange a química, a física, a matemática, a biologia.

É um conhecimento que vem dos elementos naturais e que requer, na grande maioria das vezes, experimentação laboratorial. Sua base é nas ciências exatas e biológicas. O conhecimento dos juízes é mais histórico, doutrinário, filosófico. É um conhecimento não tão prático, sem experimentações baseadas em hipóteses laboratoriais. É um conhecimento reflexivo, das ciências humanas. 

Isso demonstra que a base principiológica dos conhecimentos é diferente. Não é apenas a maneira de realizar pesquisa ou o modo de escrever que difere. A metodologia utilizada não é semelhante, o modo de interpretar aquilo que lê é oposto.

E, o mais importante, a forma de expressar o conhecimento e a informação é totalmente diferente. O direito é erudito, prolixo. A perícia é direta, probabilística. Dessa maneira, muito embora os peritos e os juízes sejam peças essenciais ao processo penal, os seus campos de fala se situam em polos opostos. São praticamente idiomas diferentes. Assemelha-se à Torre de Babel.

Mas o que realmente importa nesse cenário? Quando falamos de direito penal, tratamos de um contexto onde direitos são suprimidos, liberdades são privadas. Ou seja, as garantias processuais penais são, sem dúvida, um dos elementos mais sensíveis no âmbito jurídico. Deve-se, portanto, assegurar uma investigação e um processo justo, sem violações, sem irregularidades e sem ilicitudes. Procura-se, ainda, transmitir a informação da maneira clara e transparente, para que o magistrado forme a sua convicção a partir de elementos evidentes. Com a prova pericial não é diferente.

O que se vê na prática é que, muitas vezes, os próprios juízes não entendem o que está escrito no laudo pericial. Essa falta de entendimento pode ter consequências negativas, seja pela exclusão da prova pericial do processo, seja pela má utilização da mesma. É sabido que conhecimento ali contido não é pré-requisito para que um indivíduo torne-se um magistrado e, portanto, não é exigível que ele o possua.

Até porque seria insustentável todos os juízes possuírem total domínio de conhecimento acerca das variadas ciências forenses (balística, genética, entomologia, documentoscopia, informática forense, medicina legal, biologia, etc.). 

Sendo assim, para que haja uma aproximação entre os campos de fala, duas propostas são trazidas:

A primeira é que os peritos apontem, em seus laudos, as características técnicas necessárias e imprescindíveis para a elaboração do exame, e, concomitantemente, realizem uma explicação clara do resultado, sem realizar uma afirmação subjetiva do seu ponto de vista sobre o caso. Ou seja, o perito não pode emitir sua opinião pessoal como, por exemplo, se o acusado Y é ou não culpado de um estupro, ou se uma nota de dinheiro supostamente falsa foi ou não roubada pelo acusado X.

Juízos de valores devem estar afastados de qualquer laudo pericial. Isso é muito bem apontado no relatório produzido pela a Rede Europeia de Institutos de Ciências Forenses, (European Network of Forensic Science Institutes) intitulado ENFSI Guideline for Evaluative Reporting in Forensic Scienc: Strengthenin the Evaluation of Forensic Results across Europe. O relatório traz um gama de informações acerca de como deve ser realizada a comunicação das descobertas científicas na corte. Dentre esses requisitos, temos o equilíbrio, a lógica, a robustez e a transparência. Essas são características essenciais de um bom laudo pericial e que não podem faltar no momento da produção da prova científica.

A segunda proposta trazida é que os próprios juízes solicitem aos peritos que estes compareçam ao tribunal para sanar quaisquer dúvidas. Dificilmente um perito oficial relata que compareceu à corte para questionamentos do magistrado. Essa é uma prática pouco difundida no Brasil, e amplamente frequente no exterior.

É preciso que se crie uma cultura semelhante no Brasil, de modo a aproximar os protagonistas das ciências forenses dos tribunais. É importante que os peritos participem dos debates, principalmente porque, em alguns casos penais, a prova pericial frequentemente é o principal elemento do conteúdo probatório que embasa a sentença. Se há dúvida, que seja sanada. Caso contrário, que prevaleça o in dubio pro reo


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Maria Eduarda Azambuja Amaral

Doutoranda em Ciências Criminais (PUCRS) bolsista CAPES/Brasil do INCT Forense. Mestre em Biologia Celular e Molecular (PUCRS). Especialista em Perícia Criminal e Ciências Forenses (IPOG). Biomédica (UFRGS) e Graduanda em Direito (PUCRS).

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