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A permissão legal para a pena de morte no Brasil

A permissão legal para a pena de morte no Brasil

Dispõe a Constituição Federal de 1988, (ainda) vigente, em seu artigo 5º, inciso XLVII:

Art. 5º, inciso XLVII – não haverá penas: 

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; 

b) de caráter perpétuo; 

c) de trabalhos forçados; 

d) de banimento; 

e) cruéis; (…). (grifos nossos).

Observada a realidade das favelas e periferias, devemos notar que, sim, as polícias civil e militar estão isentas desse mandamento constitucional. Os chamados “autos de resistência” são instaurados quando um policial mata um civil em serviço, mas geralmente são autos para inglês ver: dificilmente um policial é condenado por homicídio de civil; quando acontece, a pena é extremamente benéfica, e logo o policial volta às ruas.

Há tempos a atuação das polícias, civil, militar e federal, merece maior atenção da doutrina e da jurisprudência. O famigerado “combate à criminalidade” é utilizado como escusa para uma polícia violenta, que desrespeita a Constituição a torto e a direito. O processo penal brasileiro, do qual fazem parte as polícias, o Ministério Público e o Judiciário, caminha a passos largos para uma volta à Idade Média.

O punitivismo penal, apoiado pela mídia, Ministério Público e Judiciário, pretende transformar o inexistente “Estado Democrático de Direito”, ou “Estado Constitucional de Direito”, para alguns autores, em “Estado Policial de Direito”.

Pena de morte no Brasil

Isentar a conduta de policiais que matam civis em serviço é legalizar a pena de morte no país. O anacrônico do processo penal brasileiro é que o Judiciário não pode aplicar pena de morte, mas essa licença é livremente concedida aos policiais, que em segundos, em uma “batida” policial, decidem quem vai viver e quem vai morrer.

Nos Estados Unidos, de quem os atores do MP e Judiciário brasileiros querem copiar tudo, ignorando as diferenças entre os sistemas de common law e civil law, a Suprema Corte decidiu que é ILEGAL atirar em criminosos que fogem, conforme dispõe a reportagem da BBC Brasil:

Em 1982, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu ser ilegal atirar em criminosos que fogem. Assim, os agentes só podem justificar o disparo de suas armas contra civis se temerem por suas vidas ou integridade física.

No Brasil ou Estados Unidos, quando o policial decide atirar, é para matar:

Quando os agentes abrem fogo, atiram para matar, uma medida destinada, em parte, para reduzir o tiroteio.

Você ouve pessoas bem-intencionadas que falam sobre ‘atirar para ferir’ porque querem evitar a morte de suspeitos”, continua McCoy. “É uma ideia muito ruim.”

Disparar para ferir é também impraticável, porque nos segundos antes de disparar a arma, o alvo pode ser menos preciso.

(…)

Em vez disso, agentes são orientados a apontar para a “massa central” – o centro do torso de um suspeito. Isto oferece um objetivo mais amplo – mas também aumenta a probabilidade de que o suspeito seja morto.

Depois que um cidadão é baleado por um agente, uma investigação interna é iniciada e o policial pode ser investigado pelo governo federal ou outras agências externas.

Na maioria dos casos, não são apresentadas acusações contra o oficial. Isto, em parte, devido ao benefício da dúvida dado a policiais.

“Talvez ele não estava em perigo, mas se ele razoavelmente acreditava estar, o tiro é justificado”, disse McCoy.

O fato de que o mesmo benefício da dúvida não seja dado a homens inocentes mortos pela polícia é fonte de muita tensão em Ferguson, embora os detalhes reais do tiroteio não estejam claros.

No Brasil, volta e meia, qual seja, sempre, há notícias de civis atingidos por policiais em operações:

Um estudante de Odontologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) foi baleado durante um tiroteio entre criminosos e policiais em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. A família só foi encontrá-lo alguns dias depois, internado em estado grave no Hospital Estadual Alberto Torres, baleado na barriga. De um lado, a polícia afirma que ele era um dos criminosos, mas os familiares negam.

O treinamento policial segue o famigerado “Direito Penal do Inimigo”: todos são suspeitos até prova em contrário. Não há princípio de presunção de inocência, devido processo legal, direito a advogado ou a Defensoria Pública. A Constituição Federal não existe numa abordagem policial. O Policial, no momento da abordagem, é promotor e juiz, faz a acusação, avalia as provas e dá a sentença, que pode ser de morte.

Nesse sentido:

A disposição para a prisão de criminosos como principal tarefa da função policial militar mostra, em certa medida, a analogia entre essa tarefa e aquela desempenhada pelas forças armadas, o que se dá no interior das categorias do habitus policial militar. Isso porque a missão dos policiais é considerada, por eles, uma “guerra contra o crime”, conforme já se observou em outros estudos sobre organizações policiais (COSTA, 2004; PONCIONI, 2005). Ao prenderem criminosos, os policiais “ganham” uma batalha no combate ao crime. Segundo se observou em campo, para os policiais militares, o criminoso deve ser neutralizado, conforme a filosofia própria de exércitos em guerra, que prescreve a utilização da força com vistas à eliminação do inimigo.” (SUASSUNA, Rodrigo Figueiredo. Os policiais militares do Distrito Federal: suas disposições para com as vítimas. Artigo publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 5, Edição 9, agosto e setembro de 2011.

Não é de hoje que o Ministério Público brasileiro insiste em copiar a doutrina norte-americana, ignorando estudos sociológicos e as diferenças entre os sistemas de common law e civil law. Nesse sentido:

Conforme preleciona Loïc Waquant, os neoliberais idolatram os EUA por sua prosperidade, mas se esquecem de que se há um estado mínimo de contraprestação de serviços públicos, ele é máximo na hora de punir. A guerra às drogas, o movimento de Lei e Ordem, a seletividade penal racial, são fatores que levaram os EUA ao superencarceramento, ele é o país que mais prende no mundo, (…).

Vale sempre destacar que o discurso justificador da justiça penal negociada e da barganha processual se traveste de democrático e, combinado com o movimento da law e order, acaba por trazer uma resposta satisfativa ao clamor social, de eficiência na repressão penal, e nesse caso eficiência é sinônimo de velocidade, condenação rápida e penas altas. (…). (MACEDO, Geferson Vitor. RODRIGUES, Gustavo Queiroz. Oportunidade, consenso e justiça criminal negocial: os mecanismos atuais e crítica aos projetos de expansão e barganha no ordenamento jurídico brasileiro a partir da literatura. In SILAS, Paulo. Direito & Literatura: Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018).

Conclusão

Nenhum governo tem ou já teve a fórmula mágica para acabar com a criminalidade. Toda sociedade organizada terá suas taxas de delinquência/criminalidade, devendo desenvolver estudos e políticas públicas a fim de punir e, concomitantemente à punição, procurar trabalhar na prevenção ao crime.

Erros crassos já foram cometidos em nome do combate à criminalidade. Sem oferecer soluções mágicas, que não existem e nunca existiram, o Estado brasileiro deveria investir em mais estudos sociológicos, ao invés de copiar políticas de outros países, sem um mínimo de embasamento teórico. Nas palavras de Grinover, Antônio Magalhães e Scarance Fernandes:

É por isso que a investigação e a luta contra a criminalidade devem ser conduzidas de certa maneira, de acordo com um rito determinado, na observância de regras preestabelecidas. Se a finalidade do processo não é a de aplicar a pena ao réu de qualquer modo, a verdade deve ser obtida de acordo com uma forma moral inatacável. O método através do qual se indaga deve constituir, por si só, um valor, restringindo o campo em que se exerce a atuação do juiz e das partes. (GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal. Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes – 12 ed. rev. E atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011).


REFERÊNCIAS

GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal. Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes – 12 ed. rev. E atual. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

MACEDO, Geferson Vitor. RODRIGUES, Gustavo Queiroz. Oportunidade, consenso e justiça criminal negocial: os mecanismos atuais e crítica aos projetos de expansão e barganha no ordenamento jurídico brasileiro a partir da literatura. In SILAS, Paulo. Direito & Literatura: Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018.

SUASSUNA, Rodrigo Figueiredo. Os policiais militares do Distrito Federal: suas disposições para com as vítimas. Artigo publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 5, Edição 9, agosto e setembro de 2011.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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