Persecução penal: (in)adequação com a Constituição Federal (ainda) vigente
Persecução penal: (in)adequação com a Constituição Federal (ainda) vigente
A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 foi um grande marco democrático e talvez o mais significativo deles para e na história brasileira recente.
Em contraste a predominância de períodos autoritários e ditatoriais, cujas normas possuem igual natureza, surge a Lei Maior brasileira, cidadã, cheia de ideais e tão democrática devido aos traumas individuais e coletivos que foram sentidos pela população brasileira, durante anteriores períodos sombrios.
Desta forma, o ideal seria a reescritura das normas infraconstitucionais com objetivo de alinhar e harmonizar todo o ordenamento jurídico, rompendo com toda a base ditatorial e eliminando qualquer resquício inquisitorial.
Porém, evidente que, até o momento, não houve movimentação por parte do Poder Legislativo, dentro da esfera penal e processual penal, para a (re)criação do Código Penal e do Código de Processo Penal, coerentes com os direitos fundamentais, princípios constitucionais e com o Sistema Acusatório, trazidos pela CF/88.
As principais Leis Federais que tutelam basilarmente a persecução penal, continuam sendo as da década de 40, condizentes com a época que entraram em vigor: o Estado Novo’ regime autoritário que perdurou de 1937 a 1945, cuja base jurídica foi a Carta ditatorial de 1937, os quais buscaram inspiração, inclusive, no chamado Codice Rocco italiano, concebido durante o regime fascista enfrentado pela Itália no decorrer de 1930 (QUEIROZ, 2017, p. 23).
Houve uma recepção formal da Constituição com o ordenamento jurídico já vigente, porém não há como falar em recepção constitucional material, pois tais Códigos estão contaminados, quase que na totalidade, por dispositivos compatíveis com ideologia, sistema de estado, sistema de governo, sistema processual distintos do corpo constitucional atual, e portanto, incompatíveis com a Carta Magna.
Uma vez não recepcionado o conteúdo, até porque, não há interesse em acabar com o prazer que causa a barbárie da espetacularização da persecução penal, o que se tem agora são Códigos de natureza inquisitória protegidos e blindados sob o argumento dessa falsa recepção, bem como dispositivos inconstitucionais em vigor, seja no conteúdo, seja por incoerência no próprio procedimento, por inconformidade com o Sistema Acusatório (arts. 26, 385 do CPP),
Assim, o grande desafio que impera aos operadores do direito é interpretar, compreender e aplicar as normas vigentes, sob a luz democrática da Constituição Federal, até de modo preventivo, já que, formalmente, todas foram recepcionadas, não bastando a confiança na leitura do que está escrito.
E neste ponto, vale relembrar a importância do conhecimento do texto constitucional, pois é a partir dele que se deve ler e compreender todos os demais, e não ao contrário, acreditando que a simples leitura do Código Penal, do Código de Processo Penal ou de Leis específicas bastam para uma boa atividade jurídica e jurisdicional, pelas razões acima expostas.
Contudo, em tempos de flexibilização normativa-constitucional, relativização de direitos, o perigo social e as consequências dessa liberdade hermenêutica, em um primeiro momento necessária para a filtragem dos dispositivos, imperam no dia-a-dia forense, abrindo caminho para o ativismo judicial, decisionismo, fundamentações com motivações ocultas extra autos e para além do direito.
Assim, abre-se margem para decisões baseadas não no que é o direito ou no que ele diz, mas sim naquilo que se acha que é ou que se convém achar que é, naquilo que se quer que ele diga, extraindo interpretações, conforme Lenio Streck, “da onde não tem como tirar” condicionando o futuro do acusado a circunstâncias políticas, econômicas, sociais e a vontades subjetivas do magistrado ou da plateia da peça processual.
O que resta por ora é lutar para atividades jurisdicional, ministerial, defensiva, policial realizadas na fase preliminar e processual não se afastem do desiderato democrático instituído pela Constituição Federal vigente.
Nessa perspectiva, David Queiroz (2017, p. 22) aponta que o viés repressivo, antigarantista, ligado ao ideal de eficiência punitiva, deve ser rechaçado, por afigurar-se ao arrepio do paradigma constitucional. Muitas vezes, não aplicar a lei federal é agir constitucionalmente.
REFERÊNCIAS
QUEIROZ, David. A permeabilidade do processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.