E se o plea bargaining fosse aplicado integralmente no Brasil?
A ideia do projeto E SE? é incentivar os leitores do Canal Ciências Criminais a pensar sobre o futuro do sistema criminal brasileiro como um todo e permitir reflexões sobre a forma como estamos o conduzindo. Semanalmente serão formuladas perguntas envolvendo temas polêmicos, com a finalidade de estimular debates e discussões.
Pergunta de hoje
E se o plea bargaining fosse aplicado integralmente no Brasil?
Respostas
Com o início do novo mandato presidencial, as novas políticas criminais vão sendo desvendadas e podemos começar a entender o que o sistema penal brasileiro poderá esperar pelos próximos 4 anos. A última notícia que tivemos foi a manifestação do Min. da Justiça propondo a introdução do modelo do plea bargaining norte americano no Brasil, o que implicaria na expansão dos espaços de consenso dentro do processo penal através da possibilidade de negociação entre o Ministério Público e o indiciado de penas mais brandas em função da sua confissão e do auxílio às investigações. O que o Min. defende é a adoção de medidas que possibilitem maior “eficácia” ao sistema de justiça criminal. Muito pode ser dito sobre este tema, de forma que as considerações que aqui serão feitas ficarão apenas no nível da explanação dos principais problemas, sendo impossível adentrar aos meandros das especificidades ocasionadas pela adoção do modelo norte americano em nosso país. E o que é o plea bargaining? Ele é caracterizado pela adoção da justiça negociada, a qual possibilita às partes do processo penal uma verdadeira transação dos mais variados elementos da acusação (tipicidade, quantidade de pena, regime inicial de cumprimento de pena, etc.), exigindo do investigado/acusado, em troca, uma das seguintes condutas: reconhecimento de culpa (plead guilty), negação de culpa (not guilty) ou a abstenção em defender-se (no contest, nolo contendere). A primeira questão que merece ser enfrentada é a noção de “eficácia” do processo penal. Na verdade, o termo “eficácia” é utilizado de maneira incorreta, uma vez que o que se propõe através do plea bargaining é a eficiência do processo. A eficácia pressupõe o alcance dos resultados almejados pelo processo e, lato sensu, pelo sistema criminal. Isso não é o que ocorre através do plea bargaining, basta ver a quantidade de casos de inocentes que aceitam acordos com o medo de não conseguirem provar sua inocência nos tribunais. E a eficiência proposta é nos mesmos moldes da compreendida no Direito Administrativo: fazer mais com menos. Tenta-se encurtar o processo penal e ao mesmo tempo chegar a uma resposta (não se sabe se a correta, mas apenas uma resposta). Hoje nos EUA mais de 90% dos casos são resolvidos sem audiência de instrução e julgamento, através de acordos entre acusação e defesa (SCHÜNEMANN e ROMERO). Esta noção de eficiência no processo penal está cada vez mais “na moda” principalmente em razão dos problemas econômicos enfrentados globalmente. É nada mais que uma análise econômica do Direito. Ocorre que o processo penal não pode ser visto de maneira econômica, ele não é algo inútil no sistema jurídico, pelo contrário, a função do processo penal é garantir a aplicação de uma pena através do Estado (único competente para submeter alguém a uma sanção penal, inexistindo espaço para livre arbítrio do cidadão em submeter-se a ela ou não – SCHÜNEMANN, KHALED JR e AURY LOPES), além de servir como meio de controle do poder de punir estatal. Há aqui uma busca cada vez maior pela aceleração do resultado, em se mostrar para a sociedade que o Estado está trabalhando para conter a criminalidade. Todavia, a velocidade do processo (penal) e a velocidade da vida não podem ser vistas da mesma maneira. São espaços diferentes que possuem procedimentos (enquanto série ordenadas de atos concatenados) diferentes. Coloca-se a evidência do fato sobreposta ao formalismo, emergindo as acusações de que o direito passa a ser burocrático, considerado um obstáculo e nesta senda a eficiência toma de assalto o lugar da efetividade (COUTINHO). A eficiência quando alinhada ao tempo (ainda mais este demasiadamente acelerado) trata-se de exclusão, ou seja, a supressão de direitos fundamentais e garantias processuais (COUTINHO). Flexibilizar garantias fundamentais faz parte da grande onda que afoga o direito processual penal no mar agitado/acelerado da pretensão punitiva. Compreendidas as questões referentes à busca por eficiência no processo penal, rapidamente citamos como algumas das consequências da utilização do plea bargaining nos mesmos moldes do norte americano no Brasil. 1) O primeiro problema é o legal transplant: vamos ter um instituto criado em um sistema processual completamente diverso do nosso introduzido sem aparar suas arestas e sem adequá-lo ao modelo processual brasileiro em aplicação no Brasil (assim como foi feito com a colaboração premiada)?! 2) Como superar o princípio da necessidade da ação penal vigente no nosso ordenamento com um instituto de caráter eminentemente marcado pelo princípio da oportunidade da ação penal norte americano? 3) Como compatibilizar o plead guilty, segundo o qual o reconhecimento da acusação leva diretamente à condenação, com a confissão no nosso CPP se esta legislação determina que este meio de prova não possui valor absoluto (art. 197) cabendo ao juiz ponderá-la com as demais provas do processo? 4) Como fica a pressão psicológica (incompatível com o estado de direito) exercida sobre o réu através dos acordos propostos pelo MP que às vezes supostamente possuem algum benefício de redução de pena e na realidade este não existe? Não teríamos uma modalidade de tortura nesses casos, principalmente em relação aqueles que fazem parte do seleto grupo que frequenta o ambiente criminal? 5) Como fica a posição do sujeito de direitos no processo penal com a aniquilação da audiência de instrução e julgamento, uma das principais conquistas evolutivas do processo penal democrático? 6) Como lidar com o engrandecimento do MP em um cenário de plea bargaining quando este no nosso ordenamento deveria ser um órgão imparcial? Como fica a advocacia nesta situação tendo que oferecer aos clientes um acordo por achar que ele não conseguirá comprovar a sua inocência ao longo do processo? O advogado não passaria a mero “funcionário auxiliar” da acusação? Existem ainda uma série de outros problemas envolvidos no legal transplant do plea bargaining para o nosso ordenamento sem a sua total modificação estrutural. Não que essa seja uma opção válida, afinal, como bem sintetiza SCHÜNEMANN, “não é sua conformidade (do modelo norte americano) com os valores do estado de direito, mas são pelo contrário suas debilidades, que fazem hoje em dia o sistema norte americano parecer tão atraente para os órgãos de persecução penal […] e para a legislação por estes influenciada”. Esta é mais uma expressão da “marcha triunfal” do modelo norte americano sobre o mundo (SCHÜNEMANN).
JOSÉ MUNIZ NETO – advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, mestrando em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa.
CARLOS HÉLDER MENDES – advogado, pós-graduado em ciências penais, mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.
Se o “plea bargaining” fosse aplicado integralmente no Brasil, o sistema jurídico pátrio seria inserido em campos de incertezas. Em virtude do Brasil não ter estrutura processual para a aplicação deste instituto com origem na “common law”, já que se tem por evidente a constante disputa entre a defesa e os membros do Ministério Público. Portanto, uma negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado poderia gerar inseguranças nos campos jurídicos, em razão dos interesses pessoais, tornando a possibilidade de formalmente abandonar a acusação algo com o objetivo de mascarar artimanhas processuais. Desta forma, primeiramente o sistema jurídico pátrio precisa desestruturar as suas disputas por poder e posteriormente aplicar o instituto do “plea bargaining” de forma correta, na tutela social e das garantias do acusado.
GABRIEL CARVALHO DOS SANTOS – Acadêmico de Direito e Pesquisador
Se o plea bargaining, fosse aplicado integralmente no Brasil, estaríamos a optar por uma Justiça consensual ao invés de uma Justiça que confisca a vítima, que se pretende detentora do Direito de punir. O sistema jurídico brasileiro estaria a transmutar-se para um sistema de Commom Law, sem nenhuma tradição para tanto. Uma vez que a “punição” é negociada, e muitas vezes não ocorre neste modelo; poder-se-ia criar uma impressão de que a Justiça não está sendo feita. Creio que os brasileiros comuns não estão ainda preparados (ou acostumados, ja que nosso sistema jurídico é baseado no princípio da legalidade), principalmente por uma questão de desconhecimento do instituto e da própria legislação e sua aplicação, para uma Justiça que opte por não denunciar, por punir de modo alternativo, sem que se considere algo em torno da impunidade. As diferenças inerentes à sociedade da qual se importam determinadas técnicas e as sociedades nas quais se pretenda aplica-las, devem ser levadas em consideração. Numa sociedade tão díspar, quais as garantias podem ser apresentadas de que a negociação de fato alcançou o melhor resultado para a sociedade? Como dito pelo professor Afrânio Silva Jardim 1: “Quem vai controlar essa barganha? Pode haver pena sem o devido processo penal? Como será obtida a prova? Será uma forma de oficializar a seletividade e a Lawfare?” Enfim, determinados institutos, em minha opinião, devem derivar de avanços e amadurecimento sociais, de modo que o Direito reflita uma maturação social, não o contrário. Não há motivo para enxertarmos institutos estrangeiros que levaram séculos para se desenvolverem numa sociedade, senão muito diferente da nossa, com suas peculiaridades sociais e morais; em nosso Direito. Pode ser que o Brasil caminhe para este tipo de resolução de conflitos? Pode!!! Mas é isso, o país deve caminhar para o amadurecimento deste ” novo tipo” de justiça. Sinceramente, não acho que estamos moralmente e juridicamente preparados.
MYRNA ALVES DE BRITTO – Bacharelanda de Direito (UFRRJ)
A polêmica proposta do atual Ministro da Justiça, importa dos Estados Unidos o “Plea Bargain” (acordo entre réu e Ministério Público), onde muitos entendem que o mesmo será um aprimoramento da persecução criminal. O projeto do novo Código de Processo Penal em trâmite na Câmara dos Deputados, enfatiza a sua importância, bem como, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) defende sua implantação: “não se pode mais ignorar a dificuldade que tem o Judiciário de solucionar, tempestiva e satisfatoriamente, todos os conflitos que a ele são levados. A Justiça Negocial aparece como alternativa legítima, cumprindo, de forma célere e segura, a função dirimente do conflito”.
O “plea bargain”, seria aplicado a qualquer crime de furto, assalto, homicídio ou corrupção cometido por uma única pessoa sem o envolvimento de organizações criminosas. No qual o acusado admite a culpa e obtém algumas vantagens, como reduzir sua pena ou transformar a condenação em cumprimento de serviços comunitários ou pagamento de multas. É notório lembrar que o Juizado Especial Criminal prevê possibilidades de acordo, bem como a colaboração premiada nada mais é do que mais uma tentativa de acordo. Vale ressaltar, que 90% dos casos criminais são resolvidos em acordos nos Estados Unidos.
É de sabido que o sistema adotado hoje no Brasil (Civil Law) há a observância dos princípios constitucionais, no qual, qualquer inobservância dos mesmos, gera a nulidade absoluta da acusação, outrossim, há o devido processo legal e o aparato ao contraditório e ampla defesa. Devemos sim pensar na garantia constitucional da razoável duração do processo e desafogar o Poder Judiciário, mas sem violar os princípios constitucionais, pois, destarte com fulcro no art. 5º, inciso XXXV “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’.
É válido buscar alternativas para a eficiência do sistema de justiça, mas apreciando suas vantagens, e se o novo sistema que resolverá a lide em questão sem o enfrentamento do mérito no processo, não desrespeitará os direitos fundamentais do acusado e trata igualdade, bem como jamais violar o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial de lesões a direitos.
BÁRBARA FUZÁRIO – Bacharel em Direito, Pós-Graduada em Ciências Criminais. Pós-Graduada em Gestão de Segurança Pública. Pós-Graduada em Direito Penal e Processual Penal. Professora de Direito e Segurança Pública.
Inicialmente, uma questão vem à tona: qual seria o tamanho do poder dado ao Ministério Público? Para os defensores do plea bargaining, este instituto traz uma agilidade em busca da condenação, além de evitar que o Estado gaste altos valores com processos criminais, diminuindo o número de processos no Judiciário. Atualmente, vivemos em um momento onde quer-se importar institutos utilizados em outros países para o sistema penal brasileiro, tomando como espelho, quase sempre, os Estados Unidos. Porém, querer “americanizar” o sistema penal brasileiro não é a melhor solução para curar as “mazelas” do direito penal e processual penal. Antes de importar algum instituto utilizado em outro sistema jurídico, deve-se analisar as diferenças desses sistemas. Uma das grandes diferenças, que influenciaria diretamente nos efeitos do plea bargaining no Brasil, é a forma de ingresso de um membro do Ministério Público nos Estados Unidos e no Brasil. Nos Estados Unidos, os membros do Ministério Público ingressam na carreira por meio de eleições populares. Ou seja, a sociedade tem o controle da atividade exercida pelo Promotor de Justiça, pois, caso o membro do parquet não exerça a sua função com base no interesse público, ele pode não ser eleito novamente e perderá o cargo. Já no Brasil, os Promotores ingressam através de concurso público, tendo a garantia da vitaliciedade no cargo. Isto é, caso o Agente Parquetiano não exerça as suas funções zelando pelo cumprimento dos direitos fundamentais, a sociedade não tem o controle de suas atividades. É nesse ponto onde mora um dos perigos da aplicação do plea bargaining no Brasil, qual seja, o tamanho do poder que seria dado ao membro do Ministério Público, onde este tem a garantia da vitaliciedade do seu cargo, para exercer a sua função com independência, muitas vezes confundida como poder absoluto para acusar. Com a aplicação do plea bargaining no Brasil, seria dado ao Parquet um “super poder”. Dificilmente haveria um controle dos acordos firmados entre o Ministério Público e o acusado, tendo em vista as garantias da função pública. É sabido que o judiciário brasileiro está abarrotado de processos, especialmente quando se fala na justiça criminal, onde os processos claramente não obedecem o mandamento constitucional de duração razoável do processo. Porém, o instituto do plea bargaining não é a melhor solução para o sistema criminal brasileiro. Este instituto traz uma grande possibilidade de violação aos princípios constitucionais, como ao princípio da ampla defesa e contraditório, pois estaríamos a mercê do poder discricionário do Ministério Público. Ademais, com o grande poder dado ao Ministério Público com a aplicação do instituto do plea bargaining, o acusado correria um grande risco de sofrer coação por parte do órgão acusador para conseguir a confissão, correndo o risco de haver até uma declaração de culpa de uma pessoa inocente. Outra grande problemática é o aumento da população carcerária. De fato, com a nova política de acordos entre Ministério Público e acusado, o problema de celeridade processual seria resolvido, contribuindo para a diminuição de processos no judiciário. Porém, a utilização descontrolada de acordos, fatalmente iria ter como consequência o aumento do número de prisões, fazendo crescer, ainda mais, a população carcerária brasileira, trazendo problemas ainda maiores para o Estado. Por isso, a aplicação do plea bargaining não tem compatibilidade com o sistema penal brasileiro.
ALEXANDRE TEIXEIRA DO NASCIMENTO – Advogado, Pós-Graduando em Ciências Criminais
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