Plea bargaining no projeto do novo CPP
Plea bargaining no projeto do novo Código de Processo Penal
No final de semana passado, nos dias 21 e 22 de outubro, o Instituto Brasileiro de Processo Penal (IBRASPP) realizou o Congresso “As reformas processuais penais: panoramas latino-americano e brasileiro”, que teve como tema principal o debate sobre o projeto do novo código de processo penal. Dentre os painéis, discutimos “A influência do common law nas reformas latino-americanas e os mecanismos de solução alternativa ao processo penal”.
Com efeito, já sinalizamos em outros artigos desta coluna quanto aos perigos da importação automática de institutos norte-americanos para nosso ordenamento, a exemplo da entrevista concedida pelo juiz Sérgio Moro para a Câmara dos Deputados, na qual afirma ser favorável à admissão de provas ilícitas desde que obtidas quando há boa-fé do policial envolvido; na oportunidade questionei a realidade das nossas delegacias e apresentei dados estatísticos e até mesmo a própria justificativa do Ministério Público Federal na proposta das “10 medidas de combate à corrupção” quanto aos altos índices de corrupção e mesmo postura violenta dos nossos agentes, contrastando com a realidade estadunidense. Ademais, o próprio número de delegacias e agentes de polícia, o aparelhamento e formação nos EUA diferem, e muito, do que vivenciamos no Brasil.
Em outra oportunidade manifestei-me sobre a delação premiada ou colaboração premiada, abordando não apenas os aspectos morais e éticos do instituto, mas, sobretudo, a forma como vem sendo utilizada no Brasil, violando regras básicas e essenciais para a delação: a voluntariedade do sujeito e a ausência de coação. Criou-se a famigerada “prisão para delação”, ou seja: o sujeito é preso preventivamente até que delate; causa ainda desconforto ler notícias sobre o direcionamento dos depoimentos dos colaboradores, pois estariam sendo aproveitados tão somente os trechos que interessariam, a princípio, aos investigadores, sendo descartadas outras informações sobre indivíduos que não se desejaria no momento perseguir.
O cerne da coluna desta semana será a análise do artigo 283 do projeto do novo código de processo penal, que prevê expressamente a possibilidade do plea bargain em nosso ordenamento.
Para tanto, convém além de definir o instituto, analisar o mencionado dispositivo legal do projeto e os problemas já existentes nos EUA, sobretudo, quando pessoas inocentes aceitam realizar o acordo, abrindo mão de suas garantias processuais penais, aceitando prontamente uma condenação, com receio de serem submetidos a um julgamento longo, expositivo, com sérios riscos de terem um provimento jurisdicional mais grave. Há justiça em condenar um inocente?
O PLEA BARGAINING E A PREVISÃO DO ARTIGO 283 DO PL 8045/2010
O plea bargaining é adotado nos Estados Unidos e em outros países de tradição do common law, consistindo negociações celebradas entre o Ministério Público e o suposto autor do fato, em que se barganha itens da acusação (redução do número de acusações, reduções da pena a ser imposta, aplicação de penas menos severas, por exemplo) e o réu abre mão do processo penal, e, por conseguinte, de suas garantias processuais, como o contraditório e a ampla defesa, a presunção de inocência e a garantia contra a autoincriminação.
Ou seja: o Ministério Público propõe um acordo e o acusado pode aceita-lo sendo homologado pelo juiz sem que haja um julgamento. Podemos ter diversas possibilidades de barganha, como assinalado por Carlo Velho Masi, chamando a atenção para a plea guilty, em que o réu assume a culpa por um dos delitos dentre os vários a ele imputados ou por uma acusação menos grave, confessando e recebendo uma sanção penal mais leve que teoricamente poderia receber. Digo teoricamente, pois sequer existiu julgamento ou apreciação dos fatos e provas pelo juiz. Pode haver ainda a guilty as charged em que reconhece a culpa por todos os fatos imputados, mas em que a promotoria recomenda uma pena mais branda.
O projeto do novo CPP traz em seu art. 283 a seguinte redação:
Art. 283. Até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 276, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos.
§ 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo:
I – a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória;
II – o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo;
III – a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas.
§ 2º Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena privativa de liberdade, nos termos do disposto no art. 44 do Código Penal, bem como a suspensão condicional prevista no art. 77 do mesmo Código.
§ 3º Mediante requerimento das partes, a pena aplicada conforme o procedimento sumário poderá ser, ainda, diminuída em até 1/3 (um terço) do mínimo previsto na cominação legal, se as condições pessoais do agente e a menor gravidade das consequências do crime o indicarem.
§ 4º Não se aplica o disposto no § 3º deste artigo se incidir no caso concreto, ressalvada a hipótese de crime tentado, outra causa de diminuição da pena, que será expressamente indicada no acordo.
§ 5º Se houver cominação cumulativa de pena de multa, esta também será aplicada no mínimo legal, devendo o valor constar do acordo.
§ 6º O acusado ficará isento das despesas e custas processuais.
§ 7º Na homologação do acordo e para fins de aplicação da pena na forma do procedimento sumário, o juiz observará o cumprimento formal dos requisitos previstos neste artigo.
§ 8º Para todos os efeitos, a homologação do acordo é considerada sentença condenatória.
§ 9º Se, por qualquer motivo, o acordo não for homologado, será ele desentranhado dos autos, ficando as partes proibidas de fazer quaisquer referências aos termos e condições então pactuados, tampouco o juiz em qualquer ato decisório.
Diferentemente do quanto adotado no sistema americano, há limitação na reforma do CPP quanto ao crime que possa vir a ser objeto do acordo: crimes cuja sanção máxima não ultrapasse 08 (oito) anos. Ademais, no acordo, além da confissão total ou parcial da parte, a sanção a ser aplicada deve corresponder obrigatoriamente ao mínimo previsto na lei para o tipo, independentemente das circunstâncias agravantes ou causas de aumento de pena previstas no tipo.
A questão principal aqui, como desenvolveremos de forma mais detida no próximo tópico, é a realização do acordo pelo acusado, abrindo mão do processo e garantias a ele inerentes, em razão do simples medo de ser julgado e condenado por algo mais grave e/ou a cumprir pena mais severa. Mas, e se de fato o sujeito for inocente?
Por outro lado, convém citar alguns tipos penais do nosso código penal atual em que caberia a barganha: a lesão corporal grave e gravíssima, previstas no artigo 129 §§1° e 2°, com pena máxima de até 04 (quatro) anos no primeiro e 08 (oito) anos no segundo; o artigo 218 que trata da corrupção de menores, o artigo 218-A, que prevê a satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente, cujas penas máximas são de 05 (cinco anos)… o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, art. 231, com pena máxima de até 08 (oito) anos e o tráfico interno, art. 231-A, com pena máxima de até 05 (cinco) anos. Do mesmo modo, o crime de concussão, art. 316, com pena de até 08 (oito) anos, facilitação de contrabando ou descaminho, art. 318, somente para exemplificar.
HÁ JUSTIÇA EM CONDENAR UM INOCENTE?
Nos Estados Unidos o “Innocent Project”, uma organização não governamental, que conta com a participação de advogados filiados, que voluntariamente analisam casos em que pessoas aceitaram a barganha, acordando com o Ministério Público uma condenação mais leve, em razão do receio de ser levado a julgamento e ter uma sentença condenatória mais grave, percebeu que não são raros os casos em que inocentes assumem a culpa pelo medo.
Jed S. Rakoff em seu artigo intitulado “Why innocent people plead guilty” (Porque pessoas inocentes alegam a culpa), tece inúmeras críticas ao plea bargaining, demonstrando que o instituto não se coaduna com a própria legislação norte-americana e confere superpoderes ao promotor, tendo a defesa um papel quase que insignificante e o Poder Judiciário é praticamente colocado de lado. De fato, quem dá as cartas do jogo é o Ministério Público; não há regras específicas sobre a atuação do parquet, quaisquer limites à sua conduta, que, não raro, além de exercer demasiada pressão psicológica no acusado para aceitar o acordo, ainda blefa sobre provas não existentes, tentando extrair uma confissão para encerrar o processo.
Convém lembrar que nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, a mera confissão do acusado já encerra o processo, pois autoriza a prolação de uma sentença condenatória. Na nossa legislação, o juiz deverá sopesar a confissão com outras provas produzidas nos autos.
Convém citar a principal objeção trazida no artigo de Jed S. Rakoff para o plea bargaining:
Em terceiro, e possivelmente a mais grave objeção de todas, o promotor direciona o sistema do plea bargain, criando inúmeras pressões para haver acordo, aparentemente conduzindo um número significante de réus a declarar a culpa em crimes que eles nunca realmente cometeram. Por exemplo, em cerca de trezentos casos em que os advogados afiliados do Innocence Project atuaram, provaram que os acusados foram erroneamente condenados por crimes de rapto e homicídio que eles de fato não cometeram, em ao menos trinta casos, ou seja, 10%, declararam-se culpados nesses crimes. Presumivelmente eles fizeram isso, mesmo sabendo que eram inocentes pela probabilidade de serem condenados por crimes capitais e procuraram evitar a pena de morte, mesmo pagando o preço de serem condenados à prisão perpétua.
Mas outros casos divulgados, decorrentes com frequência perturbadora, sugerem que essa psicologia de autoproteção opera também em casos não capitais, e estudos recentes sugerem que este é um problema generalizado. Por exemplo, o Registro Nacional de exonerações (um projeto conjunto da Escola de Direito de Michigan e da Faculdade de Direito Northwestern) registra que de 1.428 exonerações legalmente reconhecidas que ocorreram desde 1989, envolvendo toda a gama de acusações criminais, 151 (ou, novamente, cerca de 10 por cento) envolveram confissões de culpa falsas.[1]
Percebemos, pois, que tal sistema é criticado nos Estados Unidos, devido ao número considerável de sujeitos que celebram o acordo com o Ministério Público para evitar um processo penal e provável sentença condenatória por pena mais severa que eles imaginam que será aplicada.
Cumpre ainda ressaltar que cerca de 90% (noventa por cento) dos processos criminais nos EUA são encerrados pelo plea bargaining.
Assim sendo, causa enorme preocupação tal previsão no projeto do novo CPP, quer em razão das próprias críticas já formuladas pelos próprios americanos quanto à aplicação desse sistema – em razão do considerável número de pessoas inocentes cumprindo pena, conferindo superpoderes ao Ministério Público e praticamente anulando a defesa do acusado, deixando ainda quase que sem função o Poder Judiciário – quer pelo risco de termos sempre a condenação a pena mínima de crimes que envolvem violência ou grave ameaça, como alguns crimes sexuais contra crianças e adolescentes, tráfico de pessoas para exploração sexual (compreendendo a exploração como algo não consentido) e a lesão corporal grave ou gravíssima.
NOTAS
[1] Third, and possibly the gravest objection of all, the prosecutor-dictated plea bargain system, by creating such inordinate pressures to enter into plea bargains, appears to have led a significant number of defendants to plead guilty to crimes they never actually committed. For example, of the approximately three hundred people that the Innocence Project and its affiliated lawyers have proven were wrongfully convicted of crimes of rape or murder that they did not in fact commit, at least thirty, or about 10 percent, pleaded guilty to those crimes. Presumably they did so because, even though they were innocent, they faced the likelihood of being convicted of capital offenses and sought to avoid the death penalty, even at the price of life imprisonment.
But other publicized cases, arising with disturbing frequency, suggest that this self-protective psychology operates in noncapital cases as well, and recent studies suggest that this is a widespread problem. For example, the National Registry of Exonerations (a joint project of Michigan Law School and Northwestern Law School) records that of 1,428 legally acknowledged exonerations that have occurred since 1989 involving the full range of felony charges, 151 (or, again, about 10 percent) involved false guilty pleas (aqui) plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining plea bargaining