Pode a autoridade policial selecionar os atos investigativos como bem entender?
Por Bruno Augusto Vigo Milanez
“Defender-se fazendo uso exclusivo do material probatório selecionado pelo acusador é o sonho de todo inquisidor” (PRADO, 2014, p. 57).
Na modernidade, a investigação preliminar não assume função exclusiva de ‘formação preliminar da culpa‘, ou seja, não configura instrumento puro e simples de colheita de atos informativos para subsidiar uma acusação. Há – na persecução penal constitucionalizada – duas outras funções essenciais e inerentes à fase investigativa: (a) evitar acusações infundadas e; (b) resguardar a higidez de todos os atos investigativos produzidos para que, de forma dialética, acusação e defesa produzam os elementos de convicção em instrução contraditória, possibilitando ao órgão jurisdicional acertar o caso penal. A evitação de processos infundados se enquadra na especial função de garantia do cidadão investigado, pois
“do mesmo modo que o processo não tem como único fundamento a instrumentalidade, a investigação preliminar também atende a um patente interesse de eficácia de direitos fundamentais, para evitar as acusações e os processos infundados” (LOPES JÚNIOR; GLOECKNER, 2013, p. 101).
Por outro lado, a manutenção da higidez e integralidade dos atos de investigação produzidos durante o inquérito policial decorre não apenas da regra expressa no art. 9, do CPP, mas principalmente de princípios constitucionais inerentes à administração pública – legalidade, moralidade, publicidade e impessoalidade (art. 37, caput, da CR/88) -, que por óbvio também orientam a atividade de polícia judiciária ou investigativa.
O resguardo de todos os elementos informativos produzidos na investigação preliminar é corolário de uma investigação imparcial – tal qual disciplinada no dever positivado no art. 107, do CPP -, cuja preocupação precípua não seja a seleção de elementos que beneficiem apenas a acusação. E igualmente deriva do princípio da comunhão da prova – que também se estende aos atos de investigação -, orientado à melhor qualidade da prestação jurisdicional.
Este princípio funciona, no processo penal, como forma de atenuação do ônus subjetivo da prova, tendo-se em vista que os elementos de convicção, uma vez incorporados ao processo, podem inclusive ser utilizados em benefício da outra parte, ainda que ela não tenha requerido a produção do meio de prova:
“O ônus da prova, em seu aspecto subjetivo, vem sofrendo atenuações. Um primeiro fator de redução de sua importância é a regra da comunhão da prova, também denominada de regra da aquisição da prova. No momento do julgamento, o juiz deve valorar todo o material probatório existente nos autos, independentemente de qual das partes produziu a prova. (…) Diante do princípio da aquisição processual, uma vez realizada a prova, ela será eficaz tanto em benefício como em prejuízo de qualquer das partes, independentemente de quem a produziu” (BADARÓ, 2003, p. 185-6).
Dessa maneira, filtrar os atos investigativos – suprimindo discricionariamente dos autos do inquérito policial determinados elementos – significa obstaculizar diversas garantias constitucionais, a começar pelo devido processo legal e pela possibilidade de um julgamento a partir de todo o cenário probatório produzido. Além disso,
“o conhecimento das fontes de prova pela defesa é fundamental, porque a experiência histórica que precede a expansão da estrutura trifásica de procedimento penal, adequada ao modelo acusatório, contabiliza a supressão de elementos informativos como estratégia das agências de repressão que fundam as suas investigações em práticas ilícitas” (PRADO, 2014, p. 48)
É nessa linha que segue a jurisprudência:
“O acesso ao conjunto de todo o “produto” de investigação policial é direito do acusado e possibilita que, desse momento em diante, a defesa conheça as “provas em potencial”, e, nessa medida, a coloca, em tese, numa situação de paridade com o Ministério Público, no que respeita ao acesso sobre informações que a ele foram levadas antes da oferta da denúncia.” – g.n. – (STJ – HC 66.304, Rel. Min. Paulo Medina, DJe 29.9.2008)
No mesmo sentido, o STF se pronunciou a respeito da exclusão seletiva, pela polícia, de determinados trechos de interceptações telefônicas, chegando à conclusão que
“Não cabe aos policiais executores da medida proceder a uma espécie de filtragem das escutas interceptadas. A impossibilidade desse filtro atua, inclusive, como verdadeira garantia ao cidadão, porquanto retira da esfera de arbítrio da polícia escolher o que é ou não conveniente ser interceptado e gravado.” – g.n. – (STF – HC 91.867, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 20.9.2012)
Por fim, precedente recente do STJ entende pela ilicitude probatória dos atos investigativos previamente selecionados pela autoridade policial, por quebra da cadeia de custódia:
“X. Apesar de ter sido franqueado o acesso aos autos, parte das provas obtidas a partir da interceptação telemática foi extraviada, ainda na Polícia, e o conteúdo dos áudios telefônicos não foi disponibilizado da forma como captado, havendo descontinuidade nas conversas e na sua ordem, com omissão de alguns áudios. XI. A prova produzida durante a interceptação não pode servir apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da prova. XII. Mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório – constitucionalmente garantidos -, a ausência da salvaguarda da integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas. (…)” – g.n. – (STJ – HC 160.662, Rel. Min. Assusete Magalhães, , DJe 17.3.2014)
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.
LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014.