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Pode o juiz, de ofício, converter prisão em flagrante em prisão preventiva?

Por Bruno Augusto Vigo Milanez

O texto constitucional, de clara inspiração democrática, erige o sistema acusatório como reitor do processo penal. Este sistema possui, dentre suas características, a separação das funções de julgamento acusação e defesa. Em outras palavras, veda que o órgão jurisdicional se substitua nas funções de investigação e/ou acusação.

A impossibilidade de o órgão jurisdicional substituir-se nas funções de investigação e acusação se espraia, por evidente, não apenas na fase processual, mas também na fase de investigação preliminar. Tanto assim que existem órgãos específicos incumbidos da função investigativa (polícia judiciária civil ou federal – art. 144, § 1º, I e § 4º, da CR/88) e da função de acusação (Ministério Público – art. 129, I, da CR/88).

 A estes órgãos compete, respectivamente, atuar na fase de investigação e na fase de processo, sempre nos limites da legalidade, cujo controle compete ao Poder Judiciário. O controle de legalidade da investigação e do processo, contudo, não significa atuação ex officio – seja para qual finalidade for – sob pena de violação do sistema acusatório.

Não por outra razão o texto constitucional, ao estipular limites ao poder jurisdicional, erige como direito fundamental (art. 5º, XXV, da CR/88) o princípio da inércia, “uma das características importadas do sistema acusatório, [que] determina que a jurisdição é inerte e não pode ser exercida (…) de ofício pelo juiz.”[1]

A vedação à atuação de ofício do Poder Judiciário não se restringe apenas e tão somente à propositura da demanda, mas também atinge a sistemática das medidas cautelares penais, como se depreende de análise superficial do regramento infraconstitucional da matéria.

Logo de início, a regra do art. 306, caput, do CPP, determina que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público (…).” – g.n. –

Referida regra não está positivada no CPP “de graça“. Ao revés, o seu objetivo inequívoco consiste em fornecer subsídios para que o órgão do MPE possa requerer a adoção das medidas cautelares que entenda cabíveis, mesmo porque na fase pré processual da persecução penal, é vedado ao Poder Judiciário a decretação de medidas cautelares de ofício.

Essa conclusão – que deriva, em realidade, do princípio constitucional da inércia – é facilmente atingida quando da análise da cláusula geral contida no art. 282 § 2º, do CPP, que se encontra localizado no Título IX do CPP (Da prisão, das medidas cautelares [logo, de toda e qualquer medida cautelar] e da liberdade provisória):

“§ 2º – As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Publico.” – g.n. –

Não há necessidade de ser um grande intérprete para, a partir da regra do art. 282, § 2º, do CPP, concluir-se que: (a) o juiz pode decretar medidas cautelares de ofício, porém apenas na fase processual e; (b) na fase investigativa, o juiz somente poderá adotar medidas cautelares quando houver provocação (representação).

Permitir que o Poder Judiciário adote medidas cautelares de ofício na fase de investigação, equivale a tornar letra morta a segunda parte do art. 282, § 2º, do CPP. Afinal, fosse a intenção do legislador permitir que o Poder Judiciário pudesse decretar de ofício medidas cautelares em qualquer fase da persecução penal, a redação do dispositivo certamente seria outra (p. ex.: as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício, ou a requerimento de parte legitimada).

É de se concluir, assim, que a ausência de requerimento na fase investigativa inviabiliza a conversão do flagrante em prisão preventiva, pois não cabe ao Poder Judiciário impor restrições a um indiciado – sob pena, inclusive, de violação da imparcialidade – sem expressa representação dos legitimados para esse intento.

Ademais, o legislador infraconstitucional, ao versar especificamente acerca da prisão preventiva, estabelece na regra do art. 311, do CPP que “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante, do assistente, ou por representação da autoridade policial.” – g.n. –

Mais uma vez, não há como negar que com a reforma promovida pela Lei 12.403/2011, objetivou-se vedar de forma estanque que o juiz decrete de ofício, na fase investigativa, prisões cautelares. O dispositivo é cristalino ao reconhecer que o juiz pode decretar a prisão preventiva de ofício, somente se no curso da ação penal. Ou seja: enquanto o processo não estiver em curso, o juiz não pode decretar prisão preventiva de ofício.

Não é temerário dizer, inclusive, que a única mudança na redação originária deste dispositivo (“em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva, decretada pelo juiz, de ofício …“) consistiu em vedar a atuação ex officio do Poder Judiciário, na adoção da prisão preventiva. Obviamente, se houve mudança na redação, esta mudança tem de significar alguma coisa, sob pena de se alterar a legislação, para manter tudo como sempre esteve.

Neste sentido, inclusive, é o entendimento de setores majoritários do Ministério Público, que conscientes de sua função constitucional em um sistema acusatório de processo penal reconhecem que

“de acordo com a nova redação do art. 311, a prisão preventiva somente pode ser decretada ex officio no curso da ação penal. Assim, se o feito estiver em fase inquisitorial, a prisão preventiva somente poderá ser decretada a requerimento do Ministério Público, do querelante, do assistente de acusação e por representação da autoridade policial. Procurou o legislador, assim, pôr fim às críticas que se sucediam no tocante ao fato de que a decretação da prisão de ofício seria verdadeira postura inquisitória, incompatível com o sistema acusatório seguido pelo Código de Processo Penal.”[2]

Neste sentido, os precedentes pátrios confirmam a conclusão a que se chega, no sentido da inconstitucionalidade da conversão ou decretação da preventiva de ofício pelo Poder Judiciário pois, “se assim procedesse, estaria o juiz ferindo de morte o sistema acusatório, a inércia jurisdicional e sua imparcialidade.”[3] Oportunamente, é de se transcrever precedente paradigmático do e. TJ/RS, corte de vanguarda e de inspiração evidentemente democrática:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE NÃO HOMOLOGADO. AUSÊNCIA DE PEDIDO MINISTERIAL OU DE REPRESENTAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL PELA PRISÃO PREVENTIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. O artigo 310 do CPP, com a nova redação conferida pela Lei 12.403/2011, determina que a prisão em flagrante seja convertida em prisão preventiva na hipótese de não relaxamento do flagrante e quando não for o caso de liberdade provisória, com ou sem fiança. A prisão em flagrante não prende por si só. Conforme art. 311 do CPP, o Juiz não pode decretar de ofício a prisão preventiva na fase policial. Ilegalidade manifesta.” (TJ/RS – HC 70045402583, Rel. Des. Francesco Conti, julg. 10.11.2011)

Por fim, há quem diga que a conversão do flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP) é instituto distinto da decretação da preventiva (art. 311, do CPP) e que o juiz não poderia decretar a prisão preventiva de ofício, porém poderia converter de ofício o flagrante em preventiva. Com a devida vênia, o entendimento não passa de mero jogo retórico, mormente porque a natureza jurídica da prisão preventiva é absolutamente a mesma, seja derivada de conversão ou de decretação.

Tanto assim que em qualquer hipótese (decretação ou conversão) o magistrado deve analisar os mesmos pressupostos e requisitos ensejadores da medida (arts. 312 e 313, do CPP), bem como verificar a possibilidade de decretação de cautelares diversas da prisão (art. 319, do CPP). O que se verifica, portanto, é que os efeitos, os pressupostos e os requisitos da decretação ou da conversão são rigorosamente os mesmos, não havendo qualquer razão de ordem sistêmica ou dogmática para conferir tratamento distinto à uma mesma situação jurídica.

Por fim, a única diferença que se observa entre os institutos é que a conversão (art. 310, II, do CPP) se presta para hipóteses nas quais houve situação de flagrância (art. 302, do CPP) e a decretação serve para hipóteses nas quais inexiste flagrante. O efeito prático de ambas, contudo, é rigorosamente o mesmo!


[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. In: Revista de Estudos Criminais. a. 1, n. 1. Porto Alegre: ITEC, 2001, p. 37.

[2] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 516. A posição também é seguida, ainda que em tom mais crítico, por: LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 823: “A nova redação do art. 311 não representou  avanço significativo, pois segue permitindo a prisão preventiva de ofício, desde que no ‘curso da ação penal’.”

[3] Autos sob nº 8189-51.2011.8.17.0480, 2ª Vara Criminal de Caruaru/PE, Juiz Pierre Souto Maior. No mesmo sentido a decisão do d. Juízo Marcos Augusto Ramos Peixoto, do Rio de Janeiro, nos autos sob nº 0265394-79.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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