Poder disciplinar nas relações de trabalho
Por André Peixoto de Souza
A tese defendida pela Professora Liliana Segnini na PUC-SP, sob orientação de Maurício Tragtenberg, abordou as relações de poder e a formação do sujeito disciplinado no contexto do, então, maior banco privado do Brasil: o Banco Brasileiro de Descontos S/A (Bradesco). Deteve-se, na fundamentação teórica, aos conceitos de poder disciplinar (Foucault) e mais-valia pela exploração do trabalho (Marx).
Destaca-se da referida tese o aspecto da concentração de mais-valia apropriada na esfera do trabalho, quando se observa, por exemplo, a partir de dados extraídos do Sindicato dos Bancários e da Revista Bancária Brasileira, que o Bradesco foi o banco que apresentou maior lucratividade no ano de 1985, às custas dos menores índices salariais concomitantes à maior jornada de trabalho no setor.
A força de trabalho acabou por ser a maior responsável pela lucratividade – e crescimento – da instituição no Brasil, pautada pela fusão entre o excesso de “mercadoria” disponível e a precariedade de proteção legal aos trabalhadores. Ora, a mercadoria força de trabalho cria valor ao ser consumida, e através da apropriação desse valor o proprietário (no caso, o banco) realiza o capital. Assim sendo, o cerne dessa pesquisa doutoral esteve no estabelecimento das relações entre a prática capitalista do banco e os interesses dos seus “colaboradores”.
O ponto crucial de debate surgiu na constatação de que a educação contribuiu para com a formação da força de trabalho adequada à instituição bancária: “qualificada o suficiente (e não mais!) para realizar a tarefa parcelar que lhe é destinada de acordo com a organização do processo de trabalho”.
Nesse mister, criou o banco a Fundação Bradesco, com a meta de angariar mão-de-obra barata e disciplinada, como se depreende de seus estatutos ao objetivar o seguinte: “proporcionar, aos funcionários do Banco Brasileiro de Descontos S/A e aos de empresas ligadas, extensivo a crianças outras, de quaisquer procedências, carentes de benefícios educacionais, os cursos de 1º e 2º graus profissionalizantes, os de alfabetização, o de enfermagem e os técnicos de várias especialidades (…)”.
Ressalta-se: cursos de 1º e 2º graus profissionalizantes (crianças profissionais), enfermagem (e não medicina), cursos técnicos (e não superiores). Cursos que pretendem formar mão-de-obra especializada e direcionada aos interesses da própria instituição, para meninos e meninas, rapazes e moças que serão os futuros trabalhadores da organização. Quanto às meninas, “através da disciplina ‘Educação para o Lar’, aprendem a cuidar de crianças, costurar, lavar e passar roupa, cozinhar. Além disso, ‘aprendem a viver sem desperdiçar, de acordo com o salário do futuro marido’. Isto quer dizer que, através de um fictício envelope de pagamento referente ao salário médio de um escriturário das organizações Bradesco, deverá realizar as ‘compras necessárias para a casa’ e aprender a poupar. Mesmo que não venham a ser funcionárias do Banco, estão sendo ‘preparadas’ para se casar e produzir força de trabalho de acordo com os princípios da instituição”. A escola da Fundação, fulcrada no conservadorismo, ensina as futuras “boas mães e esposas” e contribui para com a realização do que chama de responsabilidade social.
Outro claro exemplo do poder disciplinar utilizado pelo banco ao selecionar candidatos ao emprego está no fato de exigir dos futuros trabalhadores um certo grau de religiosidade. Em entrevista com funcionário do Departamento Pessoal do Bradesco foi coletado o seguinte depoimento: “serão selecionados, preferencialmente, os candidatos que possuam alguma crença religiosa, não privilegiando nenhuma crença em particular. Não é regra escrita, porém, procuramos selecionar somente pessoas que tenham alguma crença religiosa. Não precisa ser protestante, nem católico, nem [pertencer a] qualquer outro tipo de religião. Basta acreditar em um ser superior, senão vira bagunça; não há respeito às normas e hierarquias”.
Esse critério está diretamente vinculado ao respeito (ou temor) metafísico que predispõe o “crente” ao derivativo respeito (temor!) físico: o chefe está na terra assim como Deus está no céu.
Ora, a instituição se promove (interna e externamente) através da “responsabilidade social” que realiza, ao disponibilizar para mais de 33.000 crianças inseridas num contexto de marginalidade sócio-econômica as ferramentas capazes de “elevá-las” (“transformá-las”) ao grau de força de trabalho produtiva e disciplinada: um emprego! “Esta proposta sensibiliza a burguesia (possíveis clientes do banco) e possibilita a obtenção de condecorações por parte do Estado. Assim sendo, as atividades educacionais são divulgadas reforçando positivamente a imagem da organização junto ao público”. O objetivo final se consagra: a partir da utilização da tecnologia disciplinar, o Bradesco, mantendo o seu ideário, revela que o processo educacional é, em verdade, um instrumento a serviço do capital. “Por esta razão, a educação torna-se investimento: objetiva a formação de trabalhadores docilizados, não questionadores da realidade por eles vivenciadas, produtivos e de baixo custo”.
Em último destaque vale registrar parte da “declaração de princípios”, firmada por todo e qualquer novo funcionário da instituição: “Eu, fulano de tal, prometo, solene e fielmente, com otimismo e entusiasmo que seguirei e defenderei os princípios que a seguir declaro: 1 – Amar o Brasil, dedicando-me integralmente a ele e trabalhando sempre mais e melhor, até onde minhas forças permitirem; 2 – Colocar os interesses públicos, os do Banco e demais organizações Bradesco acima dos meus próprios interesses; 3 – Dentro da convicção de que ‘só o trabalho pode produzir riquezas’, agir com plena dedicação ao mesmo, com todo meu amor, minha disciplina e justa humildade; 4 – Respeitar e manter o princípio da hierarquia, condição essencial, quer no Estado, na Família e na Sociedade, para o aprimoramento do homem; (…). Local, data, ASSINATURA”.
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O comprovado erro de Adam Smith esteve no pressuposto de igualdade de condições para a luta pela riqueza (“cada homem, desde que não viole as leis da justiça, fica perfeitamente livre para perseguir seu próprio interesse à sua maneira e colocar sua diligência e seu capital em competição com os de qualquer outro homem”).
É claramente perceptível que os homens não chegam ao mercado em igualdade de condições. Os seus capitais social e cultural já os distinguem na porta de entrada do mercado. Inevitavelmente uns são mais do que outros, e a situação é agravada quando os meios de produção estão à mostra (trabalho humano e livre iniciativa como fundamentos da ordem econômica brasileira?).