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Poder Público, tecnologia e crimes: hora de pensar “fora da caixa”

Não é novidade alguma que o Poder Público, em regra, se conforma em tomar medidas paliativas (quando não totalmente ineficientes e ineficazes) e inconstitucionais/ilegais para tentar administrar. Parece que enfrentamos uma doença atávica, da qual não se pode verificar exatamente o surgimento, mas com sintomas bastante claros e também deletérios.

Para contextualizar o pensamento acima podemos trazer alguns exemplos bastante práticos. Vejamos.

Exemplo 1: celulares em presídios. 

Todos sabemos que nosso sistema penitenciário é falido, ideal e estruturalmente. Há tempos nossos presídios são depósitos de gente onde não há uma real preocupação em reabilitar mas apenas em segregar. Por isso não é surpresa que facções criminosas lá se formem e se mantenham, constituindo apenas uma parte do crime organizado. E, neste contexto, com o advento dos telefones celulares, tornou-se comum que estes aparelhos passassem a ser inseridos nos estabelecimentos prisionais, transformando-se em importantes ferramentas para negócios espúrios, dos quais lembramos o tradicional golpe do falso sequestro.

Nesta perspectiva, indagamos: o que fez o Poder Público para evitar o ingresso dos telefones celulares nos presídios? Nada concreto senão o advento de um tipo penal que criminaliza o ingresso dos tais aparelhos, nos termos do art. 349-A do Código Penal (inserido pela lei nº 12.012/2009):

Art. 349-A.  Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional.

Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

O advento do tipo penal acima mencionado, por óbvio, não impediu que os aparelhos celulares continuassem a ingressar nos presídios. Evidentemente, não seria a lei a fazer cessar a criminalidade. Mesmo assim, preferiu-se o caminho mais fácil, mais populista e menos efetivo: apenas mudar a lei. Não se tem notícias de que houve intensificação nas revistas pessoais para evitar o ingresso clandestino ou treinamento/responsabilização dos funcionários para que não cedessem à corrupção em troca da permissão do ingresso.

Aliás, outra medida que as Administrações Públicas tentaram promover foi a imposição de que as operadoras de Telecomunicações arcassem com os custos da instalação de bloqueadores de sinal celular. Como se coubesse a elas a responsabilidade pelo combate ao crime.

Exemplo 2: anulação indevida de multas nos órgãos de trânsito. 

Uma situação que também envolve corrupção e tecnologia é a anulação/exclusão indevida de autuações por infrações de trânsito. Infelizmente é comum verificarmos “prestadores de serviços” oferecendo “soluções” para todos os que atingiram a pontuação máxima no prontuário da Carteira Nacional de Habilitação. Como se sabe, ao atingir vinte pontos em um ano tem-se a suspensão do direito de dirigir. Os mencionados prestadores de serviços somente se mostram presentes porque: a) as pessoas pagam por tais serviços; b) há corrupção interna corporis nos órgãos de trânsito que fazem mau uso dos sistemas, excluindo dados indevidamente.

Neste sentido, perguntamos: o que fez o Poder Público com relação a isso? Campanhas de conscientização para evitar multas? Intensificação no treinamento e responsabilização dos funcionários públicos que manejam o sistema de multas? Não, criou-se a lei 9.983/2000, que inseriu dois tipos penais em nosso código. Vejamos.

Inserção de dados falsos em sistema de informações 

Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano: 

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.         

Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações 

Art. 313-B. Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente: 

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa. 

Parágrafo único. As penas são aumentadas de um terço até a metade se da modificação ou alteração resulta dano para a Administração Pública ou para o administrado. 

Vê-se que a resposta foi a criação de dois tipos penais com claro intuito de intimidar os funcionários públicos responsáveis pelos sistemas e inserção de dados nos sistemas. Todavia, não há dúvidas que a prática criminosa persiste, mesmo com o advento dos tipos penais em comento. Mais uma vez o Poder Público demonstrou que não soube lidar com a corrupção nem com a tecnologia.

Exemplo 3: a suspensão de aplicativo de comunicação fundada (equivocadamente) no Marco Civil da Internet, lei 12.965/14.

Por pelo menos três vezes fomos obrigados a conviver com absurdas decisões judiciais que determinaram a suspensão do aplicativo de comunicações WhatsApp. Embora os casos onde houve a suspensão tramitem em segredo de justiça ficou esclarecido, ao menos, que as suspensões se deram para punição o aplicativo, que estaria descumprindo ordens judiciais de fornecer dados cadastrais/conteúdo de comunicações em razão de investigações criminais. Note-se que nestes casos as investigações nao tinham como alvo o próprio aplicativo, mas pretendia obter dados para a investigação de criminosos que utilizam o aplicatvo para manterem-se na atividade delitiva.

Já tivemos oportunidade de discorrer sobre o absurdo destas decisões, o que pode ser conferido no texto “Investigação criminal, obstrução da justiça e a suspensão do WhatsApp”. Em resumo, o Marco Civil da Internet não autoriza a suspensão de aplicativos em face de descumprimento de ordem judicial e, ainda que se quisesse pensar em um poder geral de cautela do juiz (não tem sido este o fundamento para a suspensão), mostra-se absolutamente desproporcional e ineficaz a tal medida. Nada justifica prejudicar milhões de pessoas que utilizam o aplicativo para as mais diversas finalidades (até o próprio Judiciário o tem utilizado para mediação e intimações, por exemplo). Tal medida igualmente não impede que os criminosos se valham de outros aplicativos em alternativa àquele suspenso.

Resta claro a inaptidão das autoridades e do Poder Público para serem efetivos e, apesar de exemplificarmos com apenas três situações, parece evidente que a opção do Poder Público é dar as costas para o real problema, propondo medidas que em nada resolvem as situações fáticas.

Mais do mesmo: a busca de proibição do waze

Para piorar este cenário há mais medidas irresponsáveis que merecem ser comentadas e que, aliás, foram o incentivo para escrever o presente texto. Referimo-nos aos projetos de leis nº 5596/2013 e 5806/2013 que estão apensados e em trâmite perante a Câmara dos Deputados. Vamos às propostas.

Ambas têm o escopo de evitar que motoristas desviem de blitzes e bloqueios policiais e, ainda, identifiquem os locais onde há radares. Tudo isso com o uso de aplicativos como o Waze.

O projeto de lei  nº 5596/2013, de autoria do Deputado Major Fábio (DEM-PB) determina que “é proibido o uso de aplicativos, redes sociais e quaisquer outros recursos na internet para alertar motoristas a ocorrência e localização de blitz de trânsito” (art. 1º) estabelecendo que o provedor de aplicações deverá tornar indisponível o conteúdo que se encontre em desacordo com o caput (§1º) e sujeitará o infrator a uma multa de até R$ 50.000,00 (§2º). O projeto determina, ainda, que aquele que fornecer informações sobre a ocorrência ou localização da blitze para aplicativos, redes sociais ou quaisquer outros recursos na internet ou outros meios estará sujeito à mesma multa (§3º).

O projeto de lei  nº 5806/2013, de autoria do Deputado Lincoln Portela (PR-MG) determina a alteração do art. 230 do Código de Trânsito Brasileiro para modificar o inciso III para que conste que é infração gravíssima, sujeita à multa e a apreensão do veículo conduzir “com dispositivo, aplicativo ou funcionalidade que identifique a localização de radar, de autoridade competente de trânsito ou de seus agentes”.

Com tais disposições vê-se, uma vez mais, que as ações do Poder Público voltam-se contra a tecnologia, como se fosse ela a responsável pela incompetência e ineficiência do Poder Público. As justificativas para cercear o uso da tecnologia tem sido as mais risíveis, mas quase sempre com algum argumento no sentido de que ela tem sido uma grande ferramenta para a prática de ilícitos. É inacreditável como não se pense no óbvio: fazer o Poder Público funcionar por sí próprio. O que se vê é a busca da transferência da responsabilidade para os cidadãos e para as empresas.

Para lidar com a tecnologia em face destas questões do dia-a-dia não é possível contarmos com políticos, governantes e autoridades em geral que tenham como resposta aos desafios o enfrentamento das inovações. Já é mais que tempo que surjam pessoas que pensem de forma mais moderna, mais voltada para o encontro de verdadeiras soluções para nossos problemas. Não é mais possível admitir e nos conformar com a mediocridade que assola o Poder Público.

Marcelo Crespo

Advogado (SP) e Professor

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