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Polícia científica e a ‘verdade real’

Seja em processos criminais, seja em causas cíveis, sobretudo as relacionadas a acidentes de trabalho, comumente se verifica na realidade forense a imprescindibilidade da polícia científica para a realização da justiça.

Não é raro que todo o desenrolar de um processo judicial seja definido com base em uma ou mais provas periciais que não poderiam, de maneira alguma, ser substituídas por depoimentos de testemunhas ou mesmo documentos preexistentes que pudessem ser juntados ao processo.

Na seara criminal principalmente, muitas vezes se verifica que todo o processo fica inviabilizado se não houver a realização de perícias.

Na ocorrência de uma morte violenta, por exemplo, é indispensável que o trabalho da polícia científica seja eficiente, sob pena de impossibilitar absolutamente a elucidação do caso.

Nesse sentido, ressalta-se que um exame de necropsia que é realizado com rapidez e qualidade pode resolver dúvidas quanto a tratar-se o caso de um homicídio ou um suicídio, por exemplo, além de elucidar as causas da morte.

Além disso, um exame de local de morte realizado com presteza, no menor lapso temporal possível após a morte, pode levar ao processo indícios de autoria e da forma com que se desenrolaram os eventos que culminaram com a morte de uma pessoa que seria praticamente impossível obter de outra forma.

Diversos outros procedimentos periciais são capazes de aproximar ao máximo o conteúdo do processo criminal da chamada verdade real, ou seja, do conhecimento pleno do que ocorreu de fato no momento dos fatos que se reputam criminosos.

Não é raro que a constatação da existência de sangue nas vestes de uma pessoa, ou de ferimentos em seu corpo, ou a revelação do conteúdo de mensagens trocadas por meio eletrônico, possibilitada pela realização de perícia em aparelhos celulares, por exemplo, altere o entendimento do julgador sobre o que ocorreu no momento dos fatos.

Tal fenômeno não ocorre unicamente nos casos de mortes violentas, mas se repete sempre que ocorrem lesões corporais, sejam elas causadas intencionalmente ou por acidente, e tratadas na esfera criminal ou cível.

Repete-se também quando um crime patrimonial, a exemplo do furto, deixa vestígios como um cadeado aberto, ou quando uma pessoa que é presa em flagrante e confessa a prática de um crime, mas posteriormente alega ter sofrido tortura para que o fizesse.

Do ponto de vista de quem busca atribuir responsabilidade a alguém pelos danos causados a bens jurídicos, que em nosso sistema costuma ser o Ministério Público, pelo menos na seara criminal, tem-se que a necessidade da eficiência na produção das provas periciais se relaciona principalmente à possibilidade que delas surge de imputar a conduta certa à pessoa certa.

Nessa lógica, ressalta-se que muitas vezes o resultado da perícia, seja ela de natureza médico-legal ou de outra natureza, como balística, impõe a alteração da capitulação do delito.

Um delito tratado inicialmente como furto pode passar a figurar como roubo, com a realização de exame pericial que revele a existência de lesões na vítima.

Um homicídio simples pode passar a ser considerado qualificado se constar do laudo do exame de necropsia que à vítima fora ministrada droga capaz de reduzir ou eliminar sua possibilidade de defesa.

Também pela lógica da defesa em processos criminais, a eficiência das perícias realizadas pela polícia científica é de suma importância. Um exame detalhado de um local de morte pode revelar, por exemplo, não tratar-se o caso de um homicídio doloso, mas de um exercício de legítima defesa que tornaria necessária a absolvição do réu.

De forma semelhante, o laudo de necropsia ou de lesões corporais da vítima pode demonstrar não ter sido a morte produzida por meio cruel, o que pode alterar a capitulação do delito de homicídio qualificado para homicídio simples.

Parece incontestável, portanto, a necessidade da eficiência nos trabalhos da polícia científica. É imprescindível para que haja realmente justiça que os laudos periciais sejam realizados rapidamente e com qualidade, pois grande parte do trabalho do sistema judiciário, principalmente na esfera penal, depende disso. Entretanto, o que se verifica na realidade fática atual no Brasil é que nem sempre é possível garantir a eficiência da polícia científica.

É evidente para qualquer pessoa que trabalhe cotidianamente com processos judiciais nos quais se faz necessária a atuação da polícia científica a defasagem entre a demanda que se lhe impõe e a estrutura de que dispõe.

Falta pessoal, e nisso se incluem peritos qualificados para a realização dos exames necessários e também as pessoas que desempenham funções de apoio a sua atividade. Faltam também equipamentos adequados para a realização das perícias.

Com essa realidade, verifica-se que tanto peritos quanto policiais que acompanham suas atividades, e mesmo as pessoas que desempenham funções administrativas na polícia científica, acabam sobrecarregados com uma carga de trabalho muito maior do que efetivamente podem realizar.

Isso acaba não só por atrasar a confecção de laudos que seriam imprescindíveis para a correta elucidação de determinados casos, mas também por causar a produção de laudos com qualidade inferior à necessária para que realmente conduzissem a um resultado justo do processo.

Não é tão raro quanto se espera encontrar em processos criminais laudos de necropsia ou de lesões corporais que descrevam equivocadamente as lesões sofridas pelas vítimas (por exemplo descrevendo como produzido por instrumento contundente um ferimento causado por disparo de arma de fogo em uma situação em que o projétil permanece alojado no corpo).

Não é possível, contudo, imputar tais falhas a uma possível incompetência dos peritos responsáveis pela confecção de tais laudos, pois em grande parte elas só ocorrem pela já mencionada sobrecarga a que eles estão submetidos.

Tampouco é raro que os laudos necessários não sejam levados aos autos a tempo de influenciarem de qualquer forma a opinião dos julgadores. No exemplo já apresentado, inclusive, o referido laudo foi juntado ao processo pouco menos de um mês após a prolação da sentença condenatória.

No mesmo sentido, verifica-se que no Paraná, a fila de aparelhos celulares a serem submetidos a perícia ultrapassa os 4.000 itens, sendo a capacidade do Instituto de Criminalística suficiente para realizar cerca de 50 perícias por mês.

Diante de todo o exposto, o que se conclui é que a eficiência da polícia científica é imprescindível à eficiência da justiça, contudo a realidade é que nem sempre essa relação funciona, pois não há estrutura suficiente para atender à demanda do judiciário no que se refere à realização de perícias.

Não resta dúvidas, portanto, de que existe a necessidade de um maior investimento do poder público neste instrumento tão importante para a realização de justiça.


Assina este texto: Susan Squair

Iuris Trivium

Grupo de simulação, pesquisa e extensão em Tribunal do Júri (UFPR)

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