Como defender um policial acusado de homicídio em razão de ‘bala perdida’?
Como defender um policial acusado de homicídio em razão de ‘bala perdida’?
É fato corriqueiro nesse Brasil a fora mortes ocasionadas por “bala perdida”. Em um país em que a violência cresce a cada dia, fatos como esses tornam-se banais, e passam despercebidos.
De acordo com os dados coletados no ISP (Instituto de Segurança do Governo do Rio de Janeiro), entre janeiro e junho de 2012, 61 pessoas foram vítimas de “bala perdida” no Rio de Janeiro. E em 2017, apenas a título de curiosidade, já foram registradas mais de 600 vítimas de “bala perdida”.
Esses números nos mostram que vivemos em uma sociedade marcada pela insegurança e pelo medo, retrato da fragilidade das nossas leis e das nossas políticas públicas voltadas ao combate a criminalidade.
Sabe-se que os policiais militares, muitas vezes, no combate a criminalidade, principalmente quando adentram nos morros para enfrentar os traficantes, terminam, em razão da troca de tiros com os meliantes, acertando e matando alguma pessoa, e em decorrência disso, sendo denunciados por homicídio.
Partindo-se dessa problema e da analise da teoria do erro, iremos apresentar a melhor tese defensiva para defender policiais denunciados por homicídio doloso, que em razão da troca de tiros com os bandidos, por vezes, acabam matando algum transeunte.
Assim, na situação hipotética objeto da nossa análise, temos um policial que matou um inocente, de forma acidental, em decorrência da troca de tiros com bandidos, e que em razão disso foi denunciado por homicídio doloso.
Para nós advogados criminalistas, essa é uma situação muito cotidiana nos Tribunais do Júri Brasil afora. Sempre que ocorre uma situação dessa, o policial é denunciado, e em muitas vezes, o juiz termina prolatando uma decisão de pronúncia autorizando que o mesmo seja submetido a julgamento perante o Tribunal popular.
Portanto, ocorrendo a denúncia ou a decisão de pronúncia (este artigo não tem por escopo definir a estratégia a ser utilizada , mas sim de apresentar a tese defensiva a ser utilizada para que se busque a absolvição do policial, devendo salientar ainda que, cada caso concreto, possui suas especificidades e diferenças), o advogado criminalista deve voltar a sua atenção para a teoria do erro, mas especificamente para a questão do erro de tipo acidental sobre a execução, para que possa solucionar a questão.
Inicialmente é importante dizer que o erro de tipo acidental sobre a execução, também conhecido por “aberratio ictus“, é um erro acidental; acessório, já que não afasta o dolo. Neste tipo de erro, o sujeito age com intenção; com vontade.
Diferindo, portanto, do erro de tipo essencial, que é aquele em que o sujeito se equivoca em virtude de uma falha ou ignorância que lhe é intrínseca, fazendo que o mesmo incida em erro. Neste tipo de erro o agente age sem o dolo; sem a vontade de praticar a conduta tida por criminosa, já que o mesmo não tem consciência da conduta que está sendo praticada.
No caso em comento, o policial age em erro de tipo acidental sobre a execução, já que age com dolo; vontade , contudo, falha na execução; pontaria, no momento da realização da conduta.
Assim, como o erro de tipo acidental sobre a execução não afasta o dolo, o policial, em tese, deveria responder pelo crime de homicídio, devendo-se levar em conta, contudo, as qualidades da vítima pretendida, e não as qualidades da vítima que foi, de fato, atingida, conforme preceitua os artigos 73, primeira parte, e 20, parágrafo terceiro, ambos do código penal brasileiro.
Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código. Art. 20 [...] §3º- O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.
Nota-se que ao se comentar acerca do erro de tipo acidental sobre a execução, o artigo 73 do código penal nos remete ao parágrafo terceiro para que apliquemos a regra do parágrafo terceiro, do artigo 20.
Sendo assim, é correto afirmar que o julgador deve considerar as características e as qualidades da vítima que o agente queria ter atingido, independente de isso ser mais benéfico ou maléfico para o agente em termos de imposição de pena.
Damásio de Jesus diz que o erro sobre a execução pode ocorrer :
Por acidente ou erro no uso dos meios de execução, como, por exemplo, erro de pontaria, desvio da trajetória do projétil por alguém haver esbarrado no braço do agente no instante do disparo, movimento da vítima no momento do tiro, desvio de golpe de faca pela vítima, defeito da arma de fogo etc. (JESUS. Damásio, 1992, p. 277)
Percebe-se que nessa modalidade de erro acidental, o erro recai justamente sobre a execução, ou seja, sobre a pontaria. Assim, no caso da “bala perdida” que mata uma transeunte, o policial responde pelo que queria, tal como se tivesse acertado o traficante (bandido), com fundamento no artigo 73, cumulado com o artigo 20, parágrafo terceiro do código penal.
Todavia, como o policial estava em uma situação de troca de tiros com os bandidos, é perfeitamente possível que se aplique a justificante da legítima defesa, tendo em vista que o policial efetua disparos contra os meliantes no intuito por fim a agressão injusta da qual é vítima, afinal de contas, em um tiroteio, antes de mais nada, o policial tem o direito de salvaguardar a sua própria vida.
Por isso, é correto se afirmar que o policial, quando acerta um disparo e vem a matar um transeunte, ele está repelindo uma agressão injusta da qual foi vítima, ou seja, está agindo em legítima defesa da sua própria vida, e o fato da bala vir a acertar, por erro na execução, um transeunte, não deslegitima a excludente de ilicitude acima mencionada.
Nota-se, portanto, que não há que se falar, nesta hipótese da “bala perdida”, na excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal, visto que o policial age no intuito de proteger o seu bem jurídico maior, qual seja, a sua vida.
Ademais, é incorreto se falar em estrito cumprimento de um dever legal porque a lei não manda matar, ou seja, não existe uma obrigação legal que autoriza o policial a matar quem quer que seja, salvo no caso do executor de uma pena de morte em caso de guerra declarada, que é a única hipótese na qual o policial tem por lei a “obrigação de matar”
Em razão do exposto, conclui-se que, utilizando-se o instituto do erro de tipo acidental sobre a execução, juntamente com a excludente de ilicitude da legítima defesa, a imputação pelo crime de homicídio doloso será afastada, e em consequência disso, o policial não será responsabilizado, tendo em vista que, sua culpa (em sentido amplo) será afastada pelo erro de tipo acidental sobre a execução em cumulação com a legítima defesa.
REFERÊNCIAS
ALMENDRA. Rodrigo; MORAES. Geovane. Teses Jurídicas Criminais. 2 ed. Recife. Armador. 2016.
JESUS. Damásio de. Direito Penal. 16 ed. São Paulo. Saraiva. 1992.