Política de guerra às drogas e desigualdade sociorracial
Política de guerra às drogas e desigualdade sociorracial
O colapso do sistema prisional brasileiro colocou em evidência um manancial de antigos problemas tratados por estudiosos de diversos ramos do Direito, notadamente do Direito Penal, do Processo Penal e da Criminologia, que tratam de forma direta o problema do encarceramento em seus mais variados aspectos.
Do populismo punitivista, evidenciado pelo excesso de presos provisórios, à deslegitimação do sistema, cuja realidade desvencilha-se em anos-luzes das suas funções declaradas, as mais variadas críticas ao sistema de justiça criminal brasileiro são diuturnamente colocadas em debate na tentativa de compreender suas falhas estruturais que culminaram no colapso do sistema prisional.
Uma dessas críticas diz respeito à decisiva contribuição da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) para o vertiginoso aumento da população carcerária no último decênio. Informações do Ministério da Justiça apontam que, em 2005, antes da entrada em vigor da nova lei, os presos por tráfico representavam menos de 10% da população carcerária.
Em 2014, 27% dessa população já é composta por indivíduos condenados ou acusados de condutas ligadas ao tráfico de drogas.
Em recente entrevista para um programa de televisão, a socióloga Julita Lemgruber noticiou uma pesquisa que aponta que a grande maioria desses presos seria formada pelas chamadas “mulas”, jovens que vendem pequenas quantidades de droga.
Nessa entrevista, a socióloga também aponta os problemas relacionados aos critérios legais para distinguir o usuário do traficante, importante porta de acesso à seletividade operada pelo sistem0a:
“A lei abre um espaço enorme para que realmente o rótulo de traficante acabe sendo sobreposto ao jovem negro, pobre, morador de favela, porque o jovem da classe média, o jovem branco, não importa a quantidade de drogas que ele estiver portando, ele vai ser sempre considerado usuário e não traficante, ao contrário do menino da favela”.
Realmente, o § 2º do art. 28 da Lei de Drogas, ao estabelecer os critérios que deverão guiar o aplicador da lei, no momento de determinar se a droga destinava-se ou não ao consumo pessoal do indivíduo (natureza e quantidade da droga, condições em que se desenvolve a ação, circunstâncias sociais e pessoais do indivíduo, sua conduta e seus antecedentes), apresenta-se como uma janela quebrada para atuação seletiva do Sistema de Justiça Criminal.
Conforme bem pontua Salo de CARVALHO (2013), o dispositivo legal “prolifera metarregras que se fundam em determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam os traficante e os consumidores”.
É nesse “vazio de legalidade” (Salo de Carvalho) que o jovem negro morador da periferia ingressará no sistema carcerário com o rótulo de traficante e o jovem branco de classe média será tratado como usuário, não obstante tragam consigo a mesma quantidade de determinada substância ilícita.
No perturbante documentário 13ª Emenda (2016), dirigido por Ava DuVernay, que traça a história do sistema prisional ianque e sua relação com a desigualdade racial naquele país, é escancarado o fato de que a política de “Guerra às Drogas” criada pelo governo de Richard Nixon, nos anos 70, e sucessivamente imposta a todo o resto do mundo, teve como uma de suas finalidades precípuas (e não como um efeito indesejado) a vigilância, o controle e o encarceramento da população negra norte-americana.
No Brasil, onde o racismo sempre foi operacionalizado de forma implícita (não declarada) e cínica, a política de “Guerra às Drogas” – a despeito da inexistência de um discurso discriminatório de caráter oficial – contribui de forma decisiva para o hiperencarceramento e o derramamento de sangue da população jovem negra, predominantemente situada nas camadas mais vulneráveis da sociedade e destinatária exclusiva do estereótipo delitivo.
Essa realidade – aliada à ausência de racionalidade e coerência do programa proibicionista (legalização de substâncias psicoativas mais prejudiciais que aquelas etiquetadas como “drogas”), à verificação de que o proibicionismo provoca mais danos e mortes que as próprias substâncias que combate e à percepção de que a política de proibição é (desde sempre) fadada ao fracasso – fortaleceu, ao longo dos últimos anos e em várias partes do mundo, os discursos antiproibicionistas e de redução de danos, que, dentre outras pautas, defendem a descriminalização da posse de droga para consumo próprio.
Marco jurídico dessa luta, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, desde agosto de 2015, está para decidir sobre a (in)constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, no bojo do Recurso Extraordinário 635.659, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (até a presente data, o julgamento encontra-se suspenso, em razão de pedido de vista formulado pelo Ministro Teori Zavascki, todavia, o resultado parcial aponta no sentido da descriminalização somente em relação à maconha).
O eventual provimento do recurso significará o fim da criminalização da posse (aquisição, guarda, depósito, transporte ou porte) de substância entorpecente para consumo próprio.
A despeito de sua relevante importância no sentido de reduzir os danos provocados pela sanguinária política criminal de drogas, a descriminalização da posse para consumo próprio, se não acompanhada de medidas legislativas ou judiciais no sentido de restringir os critérios definidores do consumo próprio (p. ex., estabelecer quantidades limites a partir das quais a autoridade poderá enquadrar a conduta como tráfico), certamente aprofundará a desigualdade sociorracial fruto da seletividade do sistema de justiça criminal.
Isso porque aqueles que já eram tratados como usuários – isto é, jovens brancos de classe média – continuaram recebendo esse rótulo, todavia, sem a incidência das medidas penais previstas na legislação, ou seja, não serão mais tratados como “criminosos”.
Por outro lado, o jovem negro da periferia, destinatário do rótulo de traficante, continuará sendo tratado como tal, pois a simples descriminalização da posse para consumo próprio em nada afetará a seletividade inerente ao sistema de justiça criminal.
A possível declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, se desacompanhada de medidas que restrinjam a discricionariedade (seletividade) das agências penais, será uma faca de dois gumes cega de um lado e muito bem afiada no lado voltado para os selecionados pelo sistema.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Salo. Política de drogas: mudanças e paradigmas (nas trincheiras de uma política criminal com derramamento de sangue: depoimento sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas). Revista da EMERJ. Rio de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 49, out-dez. 2013.