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Por que precisamos defender o Estado de Inocência?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

De acordo com o Professor Nereu Giacomolli a observância do estado de inocência surge em face das práticas do ancien regime contra a liberdade das pessoas, pois inúmeras as prisões arbitrárias; considerada a pessoa como sendo culpada, mesmo antes de ser provada a sua culpabilidade.[1] Nada mais atual, poderíamos dizer!

O estado de inocência, assim, é um princípio de elevado potencial político e jurídico (GIACOMOLLI, 2014, p. 94), o qual revela a opção ideológica do processo penal que se tem, haja vista que umbilicalmente vinculado se encontra com a adoção de um sistema processual penal acusatório. A sua concretização se revela como regra de tratamento, como carga probatória e na máxima do in dubio pro reo.

A regra de tratamento indica, ainda com Giacomolli (2015, p. 104), que o imputado não pode ser tratado como se já fosse ou nascesse culpado e nem como objeto do processo, mas como ser humano e sujeito processual, tanto no plano interno quanto internacional, mormente considerada a sua previsão em inúmeros documentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Afinal, o Estado de Inocência é antes de tudo direito humano. E, de acordo com o pensamento de WEIS,[2] os direitos humanos são aqueles correspondentes ao conteúdo das declarações e tratados internacionais sobre o tema, traduzindo os valores e as preocupações relacionados como fundamentais para a existência digna dos seres humanos e da humanidade. É por isso que tanto Ferrajoli,[3] quanto Comparato[4] irão trabalhar com a universalidade destes direitos, ou seja, a sua extensão a todos aqueles considerados pessoas.

Por outro lado, ensina Riezu[5] que o direito a presunção de inocência, embora critique a expressão presunção, aduzindo para o fato de que o direito em pauta não implica em presumir que o acusado é inocente, mas, sim, tratá-lo como inocente porque assim o é; se configura em regra de juízo, na medida em que o acusado conta com o direito de não ser condenado sem provas válidas, requerendo a tanto a existência de provas mínimas, as quais digam com os fatos que lhe restaram imputados. Aqui se inserindo, portanto, a carga probatória, cujo encargo de afastar o Estado de Inocência incumbe integralmente à acusação, bem como a máxima do in dubio pro reo.

Mas, conforme bem nos alerta Giacomolli (2015, p. 104), a maior referência ao estado de inocência ao longo da história, revela preocupação na manutenção do status libertatis como regra, situando a prisão como a ultima ratio, pois a prisão ocuparia um patamar de excepcionalidade, aplicável apenas após o afastamento de outras alternativas legais possíveis, como, por exemplo, no nosso caso, das medidas cautelares diversas da prisão, introduzidas com a Lei nº 12.402/11.

Não se desconhecem os chamados efeitos da prisionização, tanto que Goffman irá aduzir para a mortificação do ‘eu’, tampouco, as atuais condições estruturais dos Presídios brasileiros, considerados como masmorras medievais em pleno século XXI. Ainda, suscitamos nesse contexto a abandonada garantia constitucional da separabilidade entre preso provisório e definitivo, ilusória em um país que conta com mais de 40% de presos provisórios no total da sua população carcerária, inserindo-se na quarta maior população carcerária do mundo.

Falamos, portanto, de presos sem condenação, logo, inocentes que antecipadamente à decisão judicial de confirmação da sua culpabilidade permanecem recolhidos ao cárcere! E quando ao final do processo muitos desses são absolvidos? Já paramos para nos questionar se haverá reversibilidade jurídica possível de tamanha violação? A indenização, a pecúnia, o dinheiro é capaz, por si só, de compensar a violação de um direito humano fundamental?

Casos como o do ex-pedreiro Heberson Lima de Oliveira, no Estado do Amazonas, nos chocam sobremaneira. Heberson foi preso em 2003, suspeito de estuprar uma menina de 09 anos de idade. Passou três anos preso injustamente, isolado em uma cela destinada aos homens que cometeram crimes sexuais, ele foi estuprado pelos companheiros de cela e contraiu AIDS. A prisão de Heberson foi solicitada com base exclusiva na palavra do pai da vítima, que, então, teria tido um desentendimento com Heberson, pois as investigações posteriormente apontaram outro homem como autor do fato. Heberson ainda luta na justiça para obter uma indenização.

Semana passada, mais precisamente no dia 15 de agosto de 2015, o Canal Ciências Criminais noticiou que o norte-americano Lewis Fogle, de 63 anos de idade, foi liberado da prisão após 34 anos, diante a realização de um exame de DNA, patrocinado pelo Projeto Inocência. A acusação era de estupro e homicídio. Entretanto, o que mais nos impressiona é o tempo em que permaneceu preso, ainda que inocente, pois se restou preso por 34 anos e saiu da prisão com 63 anos de idade, por certo ingressa no sistema prisional com 29 anos de idade!

Penso que a essa altura não é preciso sequer responder por que precisamos defender o Estado de Inocência. Afinal, com Giacomolli (2015, p. 104), todas as pessoas, independentemente de estarem sendo submetidas a algum procedimento, estão sob o signo do estado de inocência. A referida garantia destina-se a todos os cidadãos em todas as suas relações, bem como a todos os agentes públicos e, inclusive, ao legislador ordinário. A sua defesa, portanto, é um dever que se impõe a todos nós. Uma conquista civilizatória que todo o cidadão e toda cidadã tem de sustentar e defender. Do contrário, será apenas a barbárie o que nos restará.

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[1] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2015.

[2] WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2012.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. Madri: Editorial Trotta, 1999.   

[4] COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2013.

[5] RIEZU, Antonio Cuerda. La prueba de las eximentes em el processo penal: obligación de la defensa o de la acusación? InDret Revista para el análisis del derecho. Barcelona: Abril de 2014. Disponível aqui. Acesso em: 13 jul. 2014.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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