Pornografia infantil on-line deve ser crime hediondo?
Por Dayane Fanti Tangerino
Oferecemos aos leitores, já há duas semanas, debates, reflexões e informações sobre a CPI-Ciber, da Câmara dos Deputados, sendo que nossa pretensão era a de encerrar na coluna de hoje uma, digamos, “trilogia” sobre o tema, já que a votação do Relatório Final da referida Comissão fora marcada para ontem, 27/04/2016.
Ocorre que, apesar de nossa proposta inicial, entendemos por bem postergar a coluna final sobre o tema, a fim de que possamos ter tempo hábil para analisar as minúcias do Relatório Final submetido à votação – já que a sessão de ontem fora suspensa – e trazer ao leitor o resumo essencial do importante trabalho realizado pela Comissão.
Assim, estamos optando por tratar na coluna de hoje sobre um tema de extrema relevância e que está no conteúdo do Relatório apresentado à votação na referida CPI: os “crimes virtuais” reconhecidos expressamente pela CPI da Câmara, ou seja, o rol de crimes denominados pelos Relatores da CPI-Ciber como crimes virtuais puros e mistos previstos no nosso ordenamento jurídico e a sugestão da CPI de enquadramento do crime de pornografia infantil on line como crime hediondo.
A escolha do tema se fez, tendo em vista que no final do ano de 2015 apresentamos, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dissertação tratando exatamente, dentre outras situações, do rol de crimes entendidos como digitais, virtuais ou cibernéticos puros (que preferimos denominar crimes praticados por meio das novas tecnologias).
Nessa linha de análise, a nosso ver, não obstante tenha a Comissão Parlamentar, realizado inúmeras audiências públicas, oitivas e debates, a lista de crimes virtuais puros e mistos por ela elencada, deixa a desejar, já que tipos penais relevantes foram deixados de fora da mesma. Vejamos:
Elenca a CPI os seguintes tipos:
- Interceptação telemática (art. 10 da Lei nº 9.296/96): “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”; punível com reclusão de 2 a 4 anos e multa;
- Inserção de dados falsos em sistemas de informações (art. 313-A, do Código Penal): “inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano”; punível com reclusão de 2 a 12 anos e multa;
- Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações (art. 313-B, do Código Penal): “modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente”; punível com reclusão de 3 meses a 2 anos e multa;
- Violação dos direitos de autor de programa de computador (art. 12 da Lei nº 9.609/98): “que tipifica o crime de violação de direito autoral de programa de computador”; punível com penas que variam de seis meses a quatro anos e multa;
- Crime contra a ordem tributária (art. 2º, inciso V, da Lei nº 8.137/90): “utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública”; punível com detenção de 6 meses a 2 anos e multa;
- Crimes contra equipamento de votação (art. 72 da Lei nº 9.504/97): “obter acesso a sistema de tratamento automático de dados usado pelo serviço eleitoral, a fim de alterar a apuração ou a contagem de votos”, “desenvolver ou introduzir comando, instrução, ou programa de computador capaz de destruir, apagar, eliminar, alterar, gravar ou transmitir dado, instrução ou programa ou provocar qualquer outro resultado diverso do esperado em sistema de tratamento automático de dados usados pelo serviço eleitoral”, ou “causar, propositadamente, dano físico ao equipamento usado na votação ou na totalização de votos ou a suas partes”; puníveis com reclusão, de 5 a 10 anos;
- Invasão de dispositivo informático (art. 154-A do Código Penal: “tipifica a conduta de invasão de dispositivo informático (Lei “Carolina Dieckmann”)”; punível com penas que variam de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa até reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave;
- Interrupção ou perturbação de serviço informático ou telemático de utilidade pública (art. 266, § 1º, do Código Penal): “interromper serviço telemático”; punível com a pena de detenção, de um a três anos, e multa.
Como visto, apesar de ter debatido amplamente sobre a questão da violação de dispositivos informáticos, chegando mesmo a sugerir alterações na estrutura do tipo do artigo 154-A, do Código Penal e ter havido comentário e sugestão do deputado Léo Brito (PT), reiteradas vezes, sobre o tema da inserção de código malicioso, bem como tendo sido vasta a abordagem do tema referente à pedofilia – pornografia infantil -, nenhum destes tipos penais constou do rol apresentado pela CPI-Ciber da Câmara.
Isso chama a atenção, já que os tipos legais envolvendo crianças e adolescentes não aparecem no Relatório como integrantes do rol de legislação afeta ao tema, mais, ao mesmo tempo, o tema “uso de tecnologias por crianças e adolescentes” é o mote principal do Relatório apresentado, ou seja, há incongruência patente na justificativa do Relatório já que não se pode alegar o desconhecimento dos membros da CPI sobre a existência dos tipos penais previstos nos artigos 241-A, 241-B e 244-B, parágrafo 1º, todos do ECA, que tratam, respectivamente, do crimes de pornografia infantil por meio de sistema informático e corrupção de menores em salas de bate papo da internet, pois mencionados no conteúdo do Relatório.
Também o já mencionado tipo de inserção de código malicioso (artigo 154-A, parágrafo 1º, do Código Penal) não fora considerado como “crime virtual puro ou misto”.
Como trazido pelo próprio Relatório em comento, a exploração sexual de crianças ou adolescentes mediante o uso da internet constitui fato tão grave que chega a ser sugerida, pela relatoria da CPI, a inclusão dos crimes que tenham tal situação como objeto no rol de crimes hediondos, aumentando-se a severidade com que tais atos serão punidos.
Ora, um dos pontos-chave do Relatório é a ideia de educação digital, visando propiciar e aumentar a capacidade de autoproteção por parte das crianças, adolescentes e jovens relativamente às praticas criminosas, oriundas do meio web, ofertando a CPI como sugestão a ideia de “boas práticas institucionais”, através da qual “vários órgãos públicos e entidades da sociedade civil buscam valorizar iniciativas, como grupos destinados à regulação, formal ou informal do uso da internet, assim como campanhas destinadas à educação dos usuários, especialmente crianças”, já que fora apontado por todos os participantes das audiências, em especial aqueles ligados à área da educação que há uma “necessidade do aumento da proteção a crianças e adolescentes no uso da internet”, pelo que, entendeu a Comissão “a importância de se incluir o uso seguro da internet no conteúdo curricular dos ensinos Fundamental e Médio”, tendo sugerido, a CPI, uma análise cautelosa e profunda do PL 2801/2015 que traz a educação digital para crianças e jovens, bem como “o envio de Indicação ao Ministério da Educação para a oferta obrigatória de noções de educação digital nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio, assim como para incluir expressamente a promoção da educação digital como uma das diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE)”.
Na esfera mais severa do Direito Penal, apoiou, a CPI, como já dito, a aprovação do Projeto de Lei 1.776/15, em tramitação, que tornam crimes hediondos delitos ligados à pedofilia, em especial aqueles praticados em ambiente digital.
Assim, procurando não estender demasiadamente a questão posta, elencamos as duas reflexões que surgem do até aqui apontado:
- O que entende a CPI como crime virtual puro e crime virtual misto? Por que não incluiu os tipos relativos à pornografia infantil e demais, acima citados, neste conceito.
- De que maneira a inclusão dos crimes ligados à pedofilia no rol dos hediondos combate a criminalidade cibernética e auxilia na minimização da ocorrência de crimes cibernéticos?
Primeiramente cabe observar que a própria CPI responde a nossa questão explicando que “o crime virtual puro seria toda e qualquer conduta ilícita que tenha por objetivo exclusivo o sistema de computador, pelo atentado físico ou técnico ao equipamento e seus componentes, inclusive dados e sistemas. Em contrapartida, podem ser considerados crimes virtuais mistos aqueles em que o uso de meios computacionais é condição necessária para a efetivação da conduta, embora o bem jurídico visado seja diverso do informático”. Assim, permanece a dúvida sobre os motivos que levaram o Relatório a excluir do rol de crimes virtuais mistos aqueles trazidos pelo ECA e aquele previsto no artigo 154-A, parágrafo 1º, do Código Penal, já que, na definição apresentada pela própria CPI tais tipos se encaixam perfeitamente.
Por fim, questionamos sobre a inclusão dos crimes ligados à pedofilia no rol dos hediondos, considerando que, na prática, as situações envolvendo estes crimes, por si só já são extremamente graves e tem legislação penal adequada a seu trato, sendo que as penas – e mesmo a reprovabilidade social da conduta – são extremamente severas: reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, para o delito previsto no artigo 241-A, do ECA; reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos para o caso de aquisição, funcionamento ou armazenamento de otografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; e, por fim, reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos para quem, utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet, corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la.
Como se sabe os crimes hediondos são crimes que o legislador entendeu merecerem maior reprovação por parte do Estado; do ponto de vista da criminologia sociológica, são os crimes que estão no topo da pirâmide de desvaloração axiológica criminal, devendo, portanto, ser entendidos como crimes mais graves, mais revoltantes, que causam maior aversão à coletividade. E até ai, podemos afirmar que a prática da pedofilia se enquadra nestes termos, porém, é fato também que os impactos gerados pela lei dos crimes hediondos nos índices oficiais de criminalidade e no sistema prisional e, consequentemente, na aferição de sua eficácia enquanto instrumento de política criminal são questionáveis, ou seja, não houve redução dos crimes a partir do advento da referida norma especial.
Nesse sentido, como muitos apontam, o aumento do rol de crimes denominados hediondos não traz, de fato, melhorias à sociedade, no sentido jurídico, já que, por vezes, seu maior mérito está no apaziguamento do clamor público que, por total falta de conhecimento e entendimento dos aspectos jurídicos que norteiam as leis, pressiona o Legislativo por reformas legislativas que não passam, no fundo, de mero placebo ou mesmo de medidas que, na prática, em nada contribuem para a repressão ou diminuição da criminalidade social.
Assim, pensamos que a dignidade da pessoa humana como fio condutor do Estado Democrático e Humanitário de Direito deve ser observado e, sempre, de forma reiterada, lembrado por todos aqueles que defendem as instituições democráticas e pugnam pela paz e justiça social.