ArtigosDireito Penal

Posse ou porte de arma de uso restrito passou a ser crime hediondo

Posse ou porte de arma de uso restrito passou a ser crime hediondo

Foi sancionada pelo Presidente Michel Temer lei que torna hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. A nova Lei, n.º 13.497/17, “altera a Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito no rol dos crimes hediondos”.

Assim, houve alteração no artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), o qual passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º.....................................................................................................................................................
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei no 2.889, de 1º de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados.

As grandes mudanças que decorrem dessa nova lei são, em síntese: (a) vedação do arbitramento de fiança; (b) impossibilidade de anistia, graça ou indulto; (c) alteração da fração para progressão do regime, passando-a de 1/6 para 2/5 (se primário) ou 3/5 (se reincidente); e (d) livramento condicional somente após o cumprimento de dois terços da pena, se não for reincidente específico.

Para compreendermos melhor o que significa essa mudança legislativa, necessário analisar o artigo 16 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), senão vejamos:

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.

No caso do crime tipificado no artigo 16 da Lei em comento, não se trata somente da ilegalidade da posse ou do porte da arma de fogo, tem também a questão relacionada ao fato de que determinadas armas e munições têm o uso proibido ou restrito, seja em decorrência das suas potências seja por possuírem o número de série que as identifica raspado, suprimido ou adulterado (uma das hipóteses do parágrafo único).

Portanto, se não for integrante das forças policiais ou das forças armadas e esteja na posse dentro de sua residência ou portando na rua a arma/acessório/munições de uso restrito das forças armadas; assim como, independente da sua condição e do calibre da arma, possuir ou portar arma com numeração raspada, por exemplo, caso muito comum no dia a dia, incorrerá nas sanções do artigo 16 da Lei 10.826/03.

Ocorre que o Estatuto do Desarmamento não especifica o que vem a ser uso proibido ou restrito, nem quais são as armas, munições e acessórios que se enquadram nesse rol.

Importante, portanto, analisar o artigo 3º do Decreto 3.665/2000 o qual nos traz os conceitos de “proibido” e “restrito”, senão vejamos:

Art. 3º Para os efeitos deste Regulamento e sua adequada aplicação, são adotadas as seguintes definições:
LXXX - uso proibido: a antiga designação "de uso proibido" é dada aos produtos controlados pelo Exército designados como "de uso restrito";
LXXXI - uso restrito: a designação "de uso restrito" é dada aos produtos controlados pelo Exército que só podem ser utilizados pelas Forças Armadas ou, autorizadas pelo Exército, algumas Instituições de Segurança, pessoas jurídicas habilitadas e pessoas físicas habilitadas;

Ademais, o artigo 11 do Decreto 5.123/2004 estabelece o quem vem a ser arma de uso restrito, afirmando que

é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica.

Já as armas, munições e acessórios que se enquadram nesse rol de uso restrito estão estabelecidas no artigo 16 do Decreto 3.665/2000:

I – armas, munições, acessórios e equipamentos iguais ou que possuam alguma característica no que diz respeito aos empregos tático, estratégico e técnico do material bélico usado pelas Forças Armadas nacionais;
II – armas, munições, acessórios e equipamentos que, não sendo iguais ou similares ao material bélico usado pelas Forças Armadas nacionais, possuam características que só as tornem aptas para emprego militar ou policial;
III – armas de fogo curtas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a (trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo, os calibres .357 Magnum, 9 Luger, .38 Super Auto, .40 S&W, .44 SPL, .44 Magnum, .45 Colt e .45 Auto;
IV – armas de fogo longas raiadas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a mil libras-pé ou mil trezentos e cinqüenta e cinco Joules e suas munições, como por exemplo, .22-250, .223 Remington, .243 Winchester, .270 Winchester, 7 Mauser, .30-06, .308 Winchester, 7,62 x 39, .357 Magnum, .375 Winchester e .44 Magnum;
V – armas de fogo automáticas de qualquer calibre;
VI – armas de fogo de alma lisa de calibre doze ou maior com comprimento de cano menor que vinte e quatro polegadas ou seiscentos e dez milímetros;
VII – armas de fogo de alma lisa de calibre superior ao doze e suas munições;
VIII – armas de pressão por ação de gás comprimido ou por ação de mola, com calibre superior a seis milímetros, que disparem projéteis de qualquer natureza;
IX – armas de fogo dissimuladas, conceituadas como tais os dispositivos com aparência de objetos inofensivos, mas que escondem uma arma, tais como bengalas-pistola, canetas-revólver e semelhantes;
X – arma a ar comprimido, simulacro do Fz 7,62mm, M964, FAL;
XI – armas e dispositivos que lancem agentes de guerra química ou gás agressivo e suas munições;
XII – dispositivos que constituam acessórios de armas e que tenham por objetivo dificultar a localização da arma, como os silenciadores de tiro, os quebra-chamas e outros, que servem para amortecer o estampido ou a chama do tiro e também os que modificam as condições de emprego, tais como os bocais lança-granadas e outros;
XIII – munições ou dispositivos com efeitos pirotécnicos, ou dispositivos similares capazes de provocar incêndios ou explosões;
XIV – munições com projéteis que contenham elementos químicos agressivos, cujos efeitos sobre a pessoa atingida sejam de aumentar consideravelmente os danos, tais como projéteis explosivos ou venenosos;
XV – espadas e espadins utilizados pelas Forças Armadas e Forças Auxiliares;
XVI – equipamentos para visão noturna, tais como óculos, periscópios, lunetas, etc;
XVII – dispositivos ópticos de pontaria com aumento igual ou maior que seis vezes ou diâmetro da objetiva igual ou maior que trinta e seis milímetros;
XVIII – dispositivos de pontaria que empregam luz ou outro meio de marcar o alvo;
XIX – blindagens balísticas para munições de uso restrito;
XX – equipamentos de proteção balística contra armas de fogo portáteis de uso restrito, tais como coletes, escudos, capacetes, etc; e
XXI – veículos blindados de emprego civil ou militar.

Portanto, caso possua ou porte sem autorização e em desacordo com a legislação alguma dessas armas, munições ou acessórios estará praticando um crime hediondo.

A dúvida que paira, pois o texto da nova lei, para variar, é bem ruim, é se serão considerados hediondos apenas a posse ou porte de arma de fogo de uso proibido ou restrito, constante no caput do artigo 16, ou se as hipóteses do parágrafo único, como no caso das armas com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (hipótese mais comum de incidência no tipo penal do artigo 16), também será hediondo.

Essa questão é muito importante, pois na prática é mais comum a prática do artigo 16, parágrafo único, inciso IV, do que do próprio caput.

Particularmente, apesar de achar injusto, como a Lei não especificou se somente o caput do artigo 16 será hediondo ou se as hipóteses constantes no parágrafo único também serão, limitando-se a afirmar que “Consideram-se também hediondos o crime de […] posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, […]”, entendo que abrange todo o artigo 16, incluindo o parágrafo único e as armas com numeração raspada, suprimida ou adulterada.

Rogério Sanches Cunha, ao abordar o tema, afirma que

Parece-nos, todavia, não ser possível limitar a incidência das disposições relativas aos crimes hediondos apenas à conduta do caput do art. 16. O projeto da Lei 13.497/17 tramitou, entre o Senado e a Câmara, por mais de três anos, e foi objeto de extenso debate, tanto que foram diversas as modificações promovidas ao longo do caminho (originalmente, aliás, o projeto contemplava o comércio ilegal e o tráfico internacional de armas de fogo). Fosse para limitar a incidência do maior rigor ao caput, temos de supor que o legislador o teria feito expressamente.

Além disso, limitar a incidência da Lei dos Crimes Hediondos a uma parte do tipo penal criaria uma situação desproporcional.

Assim, uma pessoa que possuir ou portar uma arma de calibre 38 (que é de uso permitido), mas que tenha a numeração raspada, incorrendo na prática do crime tipificado no artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03, praticará crime hediondo.

Apesar desse meu posicionamento, o STF, em seu informativo n.º 558, publicou a seguinte decisão, dando a entender que a posse ou porte de arma de fogo com numeração raspada, suprimida ou adulterada é crime autônomo ao do artigo 16, caput, da Lei 10.826/03:

Porte Ilegal de Arma de Fogo com Sinal de Identificação Raspado

Para a caracterização do crime previsto no art. 16, parágrafo único, IV, da Lei 10.826/2003, é irrelevante se a arma de fogo é de uso permitido ou restrito, bastando que o identificador esteja suprimido. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que condenado pela prática do crime de porte ilegal de arma de fogo com numeração raspada (Lei 10.826/2003, art. 16, parágrafo único, IV) pleiteava a desclassificação da conduta que lhe fora imputada para a figura do porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (Lei 10.826/2003, art. 14). Sustentava a impetração que, se a arma de fogo com numeração raspada é de uso permitido, configurar-se-ia o delito previsto no art. 14 e não o do art. 16, parágrafo único, IV, ambos do Estatuto do Desarmamento. Observou-se que, no julgamento do RHC 89889/DF (DJE 5.12.2008), o Plenário do STF entendera que o delito de que trata o mencionado inciso IV do parágrafo único do art. 16 do Estatuto do Desarmamento tutela o poder-dever do Estado de controlar as armas que circulam no país, isso porque a supressão do número, da marca ou de qualquer outro sinal identificador do artefato potencialmente lesivo impediria o cadastro, o controle, enfim, o rastreamento da arma. Asseverou-se que a função social do referido tipo penal alcançaria qualquer tipo de arma de fogo e não apenas de uso restrito ou proibido. Enfatizou-se, ademais, ser o delito de porte de arma com numeração raspada delito autônomo — considerado o caput do art. 16 da Lei 10.826/2003 — e não mera qualificadora ou causa especial de aumento de pena do tipo de porte ilegal de arma de uso restrito, figura típica esta que, no caso, teria como circunstância elementar o fato de a arma (seja ela de uso restrito, ou não) estar com a numeração ou qualquer outro sinal identificador adulterado, raspado ou suprimido.
HC 99582/RS, rel. Min. Carlos Britto, 8.9.2009. (HC-99582)

Segundo esse entendimento, a posse ou o porte de arma com numeração raspada, suprimida ou adulterada seria crime autônomo ao do caput, sendo irrelevante se seu uso é restrito das forças armadas ou não, bastando que o sinal identificador esteja suprimido, raspado ou adulterado.

Nesse sentido, o legislador, ao afirmar que “nas mesmas penas incorre quem”, estabeleceu que as situações descritas no parágrafo único do mencionado dispositivo constituem, elas mesmas, figuras típicas autônomas. Figuras típicas, pela circunstância elementar de a arma (pouco importa se de uso restrito ou não) estar com a numeração ou qualquer outro sinal identificador adulterado, raspado ou suprimido.

Henrique Hoffmann e Eduardo Fontes, por sua vez, entendem que não é possível incluir os crimes equiparados do parágrafo único como crimes hediondos, pois:

O motivo do Projeto de Lei foi punir com mais rigor a posse ou porte de armas de fogo de uso restrito (e o comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo, que foram retirados no curso do processo legislativo). Não houve qualquer pronunciamento do legislador no sentido de que queria incluir as condutas equiparadas, muitas das quais inclusive abrangem armas de uso permitido. [...]. Deveras, é totalmente criticável o tratamento penal diferenciado dispensado pelo legislador a figuras equiparadas. No entanto, não é papel do intérprete (seja doutrina ou jurisprudência) interferir na catalogação de crimes hediondos, que segue sistema legal.

Com base nisso seria possível compreender que somente a posse ou o porte ilegal de armas, acessórios e munições de uso restrito das forças armadas seria crime hediondo e não as hipóteses do parágrafo único, como no caso das que possuem numeração raspada.

Mas, como disse anteriormente, entendo que o legislador, ao afirmar que o crime do artigo 16 da Lei 10.826/03 virou hediondo, incluiu todo o texto do referido artigo, incluindo seu parágrafo único.

Sobre esse tema, Rogério Sanches Cunha afirma que

ainda que se considere a natureza diversa de algumas das condutas tipificadas no parágrafo único, trata-se de figuras equiparadas ao caput por expressa disposição legal. Se, ao elaborar tipo do art. 16, o legislador utilizou a fórmula “nas mesmas penas incorre”, isso se deu porque as condutas ali elencadas eram consideradas da mesma gravidade das anteriores. É, afinal, o que fundamenta as formas equiparadas nos tipos penais. Ignorar isso e destacar, para os efeitos da hediondez, o caput do parágrafo único seria nada mais do que conferir tratamento diferenciado a figuras penais que o legislador erigiu à categoria de equivalentes.

Enfim, esse é um assunto que ainda vai dar muito pano para manga e vai ser interessante verificar como será a interpretação da Justiça para o caso e como aplicará a nova redação legal.

Um grande abraço e até a próxima semana!

Pedro Magalhães Ganem

Especialista em Ciências Criminais. Pesquisador.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo