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Precisamos falar sobre a questão criminal

Precisamos falar sobre a questão criminal

A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 347 tratou sobre o sistema penitenciário brasileiro, tendo em vista a reiterada violação de direitos fundamentais dos presos.

Na referida ação, datada de 2015, requereu-se ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento de que o sistema penitenciário pátrio se caracterizasse como um estado de coisas inconstitucional. Além disso, buscou-se que os Poderes da República adotassem providências para a questão.

Como se sabe, os presídios estão superlotados. À época da ação, o país possuía a 4ª maior população carcerária do mundo. Atualmente, ultrapassou a Rússia e se encontra na 3ª posição, com mais de 800.000 presos – segundo dados veiculados recentemente –, estando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. 

Não bastasse a superlotação carcerária, o estado das prisões é desumano, com celas imundas e insalubres, onde ocorrem torturas, homicídios, violência sexual, consoante mencionou o Ministro Marco Aurélio. Sem contar a proliferação de doenças infectocontagiosas, a comida imprestável, a falta de água potável e de produtos higiênicos básicos.

Ademais, o acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho são quase inexistentes, o que propicia a insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, a discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual, estimulando o amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas. 

Assim, considerando essas condições e o significativo aumento da massa carcerária, resta demonstrado que o país tem falhado na questão criminal (que inclui a penitenciária). 

Evidente que, conforme expõe a doutrina de Aury Lopes Jr., parte desse problema decorre de uma cultura judicial de encarceramento, já que mais de 40% desses presos são provisórios, isto é, sem sentença condenatória transitada em julgado. Significa dizer que, constitucionalmente, nem mesmo são considerados culpados.

Não se pode perder de vista, todavia, que até mesmo essa cultura é baseada preponderantemente no clamor popular, que, pela ausência de compreensão efetiva sobre a questão, é sedento por prisões.

Ora, as situações mencionadas não ficam limitadas aos reclusos, indubitavelmente ocasionam problemas fora dos muros prisionais, com aumento indiscriminado da criminalidade.

Nesse sentido, inclusive, é a manifestação da ministra Cármen Lúcia, ao dizer que:

(…) ao se enfrentar o problema do sistema penitenciário, não se está cuidando apenas da defesa de uma minoria, mas também das consequências gravíssimas e dramáticas para a própria sociedade brasileira, em razão de o sistema não tratar essas pessoas com o mínimo de humanidade, gerando, por exemplo, alto índice de reincidência.

Assim, conforme alertado pelos ministros em seus respectivos votos, faz-se necessário um diálogo com a sociedade sobre o tema, o qual deve ser despido de ideologias e preconceitos. Notório que as questões criminais, sobretudo às que envolvem presidiários, são pautas impopulares que, assim sendo, não geram interesse dos poderes Executivo e Legislativo. 

O ministro Fachin, em seu voto, dispôs que:

As questões atinentes ao sistema penitenciário nacional há muito não encontram espaço fértil ou adequado de tratamento pelos poderes Executivo e Legislativo. Os direitos dos encarcerados não encontram qualquer espaço na criação e implementação de políticas públicas (Executivo) e tampouco em qualquer atuação legislativa (Legislativo).

Ora, sendo os representantes eleitos pelo voto do cidadão, buscarão medidas que ganham o apoio dos eleitores. Não irão na contramão da opinião pública. E essa opinião (distorcida), majoritariamente, é contrária à instituição de políticas públicas na seara criminal, em razão da falta de diálogo crítico sobre a questão, aliada à repetição infundada de jargões políticos e punitivistas, influenciados pela mídia sensacionalista, que lucra com a ocorrência e divulgação de fatos graves, gerando medo na população que, consequentemente, busca por solução imediata da questão.

Pode-se perceber que, logo após a ocorrência de um fato grave e com repercussão midiática, surgem projetos de lei aumentando penas e/ou criminalizando condutas, ganhando o apoio imediato dos cidadãos, que têm a convicção de que estão efetivamente tratando do problema criminal, porém apenas mascaram os sintomas sem tratar as suas causas.

É o denominado Direito Penal simbólico, que é aquele criado para atender “demandas sociais atuais e urgentes”, de modo a passar aparência de que o Estado consegue controlar a violência, ao instituir leis mais graves aos “inimigos da sociedade”. 

Acontece que, em se tratando de um problema tão complexo, qualquer proposta de solução fácil, rápida e eficaz deve ser vista com cautela. É perfeita, nesse sentido, a lição de Henry Louis Mencken, ao referir que 

Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.

Em vista disso, deve-se buscar esclarecer ao cidadão sobre a necessidade de investimento estratégico na questão criminal, com instituição de políticas públicas realmente eficientes, visto que, reitera-se, os problemas dela decorrentes não ficam restritos aos presos.

Impositivo que os debates sobre a questão, sobretudo no que se refere à prisional, não fiquem restritos ao mundo acadêmico e jurídico, de maneira que sejam levados até a sociedade.

Deve-se, por exemplo, esclarecer que o passado já demonstrou que o recrudescimento de penas e aumento de tipos penais incriminadores não resolvem o problema. Pelo contrário, nos últimos anos, diversas leis foram editadas para tratamento da criminalidade, mas não lograram êxito, basta ver o aumento da ocorrência de crimes.

Em data um pouco mais distante, mas a título de exemplo, foi editada a Lei de Crimes Hediondos, entretanto esses crimes (tidos como mais graves) não diminuíram, em que pese tenham recebido maior rigor da lei.

Igualmente, no que se refere ao aumento da pena, certo é que, mais cedo ou mais tarde, voltarão ao convívio social, elevando ainda mais o número de reincidência (se o estado de coisas continuar), porque, além do tratamento recebido, terão o “estigma de apenado”, pois não obstante terem cumprido a pena imposta, não terão possibilidade de reinserção ao convívio social, haja vista que serão sempre vistos como ex-presidiários, sem receber oportunidades para retomada da vida digna. 

Ainda, é sabido que, em que pese ocorra a prisão, mesmo que por mais tempo, haverá a substituição desse preso por outros indivíduos de forma  rápida, em um ciclo sem fim, pois não tratar a origem do problema é o que conduz à proliferação dessas práticas. Necessário buscar, também, reduzir a intolerância sobre o tema, tendo em vista que, diferentemente da proposta de Cesare Lombroso, não se nasce criminoso.

Desse modo, em atenção ao que já foi realizado e não surtiu o efeito pretendido, tem-se que é indispensável dialogar com a sociedade, de forma que essa reste esclarecida sobre a necessidade de instituição de políticas públicas verdadeiramente eficientes (não somente aparentes) que tratem dessa realidade com a devida seriedade que ela merece.

Com esse diálogo e esclarecimentos, busca-se livrar a sociedade dos preconceitos sobre a questão criminal, de modo a incentivar os representantes dos Poderes do Estado, com apoio popular, a criarem políticas públicas efetivas, investindo recursos para tratamento desta questão de elevada urgência e complexidade.


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Jeferson Freitas Luz

Estudante de Direito da Faculdade Dom Alberto (RS)

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