Precisamos repensar o dolo no Direito Penal?
Por Douglas Rodrigues da Silva
A pergunta inicial e que deverá ser respondida ao final é: o dolo está na cabeça de quem?
Quando damos início aos nossos estudos em direito penal, logo após passar pelas teorias da conduta – tema sobre o qual já nos manifestamos acerca de sua importância —, adentramos no estrato analítico da tipicidade. E, nessa esfera de análise, temos que, obrigatoriamente, passar pelo estudo do tipo doloso.
Diariamente, ao passarmos os olhares em diversos meios de imprensa, sempre vemos que determinado sujeito foi indiciado pela autoridade policial como incurso num tipo doloso, por exemplo, um homicídio, pois “havia a intenção de matar” – e essa talvez seja a definição mais comum do que seja um tipo doloso.
Geralmente, os manuais mais tradicionais de direito penal apresentam o dolo como “vontade livre e consciente de praticar o tipo objetivo”, cabendo ao julgador analisar qual era a intenção do sujeito ativo no momento da prática delitiva (BITENCOURT, 2011, p. 314-315).
Mas como aferir essa real intenção? Existe mecanismo capaz de possibilitar o ingresso do julgador na “cabeça” do sujeito ativo?
Ainda é muito comum que se descreva o dolo a partir de um viés estritamente psicológico, ou seja, o que interessa para sua análise e efetiva comprovação no caso concreto é compreender o que realmente se passava na “cabeça” do agente. Ao juiz, pois, incumbiria a atividade de perquirir acerca dos intentos que moveram determinado sujeito a praticar determinada conduta – quase que um exercício de ingresso no consciente do acusado.
Tanto foi, e talvez ainda seja, assim, que o dolo sempre gravitou pelos mais diversos estratos analíticos do crime sempre sob o caráter de elemento psicológico – no qual o julgador realmente deveria ingressar na consciência do sujeito. A investigação da presença do dolo seria crucial ao julgador no momento em que definiria a reprimenda a ser aplicada, já que um crime doloso, por óbvio, deverá ter uma pena maior se comparado ao crime culposo.
Entretanto, não enxergamos como adequada essa forma de elevar o dolo como elemento puramente psicológico e explicamos.
Desde o advento da filosofia da linguagem, que teve por mérito afastar a filosofia da consciência de Descartes (que até então previa a individualidade do ser humano e seu egocentrismo – “penso, logo existo”), sob as penas de WITTGENSTEIN (1996, p. 109-112), passou-se a compreender que a linguagem não pode apresentar-se de maneira privada. Ou seja, não existe como entender uma forma de linguagem presente apenas na “cabeça” de um único sujeito, pois a linguagem, para que exista, depende ao menos de dois sujeitos (emissor e receptor). Com efeito, o significado de algo depende do conjunto de significantes que o permeiam – a linguagem nada mais é do que o veículo do pensamento.
Em direito penal isso significa dizer que a intenção do sujeito não depende somente daquilo que se encontra instalado na sua mente, mas do significado que sua ação tem frente ao conjunto de significantes que a rodeiam. A análise da violação de um regra deve se dar no espaço público, não no âmbito privado do indivíduo.
Definir o dolo, desta feita, sob o aspecto puramente psicológico mostra-se inadequado – e, sinceramente, impossível na prática, já que o mecanismo de aferição de intenções acaba vinculado muito mais a forma como o julgador enxerga o universo a sua volta do que efetivamente com aquilo intencionado pelo autor do delito.
A professora María Del Mar Díaz Pita (2014, p. 14-15) talvez apresente a melhor maneira de definir a presença do dolo, afirmando-o a partir de um critério normativo – afastando, assim, o exercício quase sobrenatural de adentrar-se no subconsciente.
Segundo a professora espanhola (que infelizmente deixou este mundo prematuramente), o dolo se afirma a partir da confirmação de dois requisitos: i) conhecimento (consciência), ou seja domínio de uma técnica; e ii) compromisso com o resultado lesivo (intenção/vontade). Ambos os pressupostos devem ser apurados mediante a análise das condições externas da conduta do agente.
Significa dizer que o dolo não está na mente do agente, mas é retirado de critérios normativos aferidos por meio da análise das condições externas do fato delituoso. Com efeito, devemos analisar, de primeiro, se o agente possuía o domínio de uma técnica, se detinha determinado grau de conhecimento (no crime de trânsito, por exemplo, deveríamos ver se o motorista tinha habilitação para dirigir veículos, o tempo em que dirige, se detinha outras técnicas mais apuradas, como o fato de ser motorista profissional), e, depois, se, mesmo com o conhecimento que tinha, manteve o compromisso com a vulneração do bem jurídico – os elementos externos, como por exemplo, a continuidade na direção do veículo mesmo com o conhecimento de que conduzia em alta velocidade; ou, após perceber que o sujeito a quem agrediu já se encontrava inconsciente e bastante ferido, insistiu na agressão e matou a vítima.
Perceba-se que não se faz necessário, em nenhum dos casos apresentados, analisar se o agente, em sua “cabeça”, queria ou não o resultado, pois as condições externas indicaram que sim. Aliás, a concepção normativa do dolo talvez seja o melhor mecanismo para se apurar a real extensão do dolo, se direto (de 1º ou 2º grau) ou eventual, pois retira do arbítrio puro do julgador a possibilidade de “achismos”, vez que a assunção do risco se retira do prosseguimento da conduta por parte de um sujeito, dotado de certo conhecimento, no sentido de vulnerar o bem jurídico.
Então, respondendo a questão inicial, o dolo simplesmente não está na cabeça de ninguém.
O dolo deve ser um elemento normativo a fim de, corretamente, diferenciar a sanção daquele que comete um ato ilícito, mas sem o compromisso de vulneração de um bem jurídico, daquele que age nesse sentido.
O direito, não obstante muitos enxerguem ao contrário, não é exatamente uma ciência, como a matemática, física e química. O direito é, antes de tudo, um mecanismo de proposições teóricas que visam a resolução pragmática de problemas reais (BUSATO, 2015, p. 251) e, ao contrário das ciências empíricas, não pode ter “pretensão de verdade”, mas “pretensão de justiça” – o que, por suposto, não retira em nada sua importância como ramo de conhecimento.
Logo, adentrar no subconsciente de alguém, até onde se sabe, é impossível e, com isso, impossível é perquirir a “verdadeira” intenção instalada no psicológico de um sujeito. O que se permite, e deve ser feito, é a investigação acerca do significado daquilo que se fez analisando-se o conjunto de circunstâncias externalizadas (significantes) no caso concreto.
É preciso, pois, repensar a construção do dolo no direito penal.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
DÍAZ PITA, María Del Mar. A presumida inexistência do elemento volitivo do dolo e sua impossibilidade de normativização. In: BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1996.