Precisamos superar o bis in idem existente (não confessadamente) no sistema jurídico brasileiro…!

Por Denise Luz

Quem se vê sob suspeita de ter praticado ilícito contra a Administração Pública no Brasil fica submetido a uma série de procedimentos investigatórios e sancionadores, cumulativos e independentes entre si, nas distintas esferas, civil, penal e administrativa. É comum que fatos investigados, após divulgação pela mídia, recebam atenção de inúmeros órgãos do Estado. Assim, um fato que está sendo apurado, por exemplo, na esfera criminal, passa, imediatamente, a ser alvo do respectivo tribunal de contas. O Ministério Público trata de instaurar um inquérito civil. O próprio órgão da Administração em que os fatos supostamente ocorreram passa a pesquisa-los em procedimento administrativo formal. Paralelamente a todo esse esforço, haverá também atuação do órgão competente pelo controle interno (na União, a Controladoria Geral). Se houver interesse eleitoral, não faltará uma CPI para somar afinco (isso sem falar das vezes em que as duas Casas do Congresso Nacional instauraram diferentes CPIs para investigar os mesmos fatos, em vez de instaurar uma única CPI mista!). Se houver suspeita de conexão com sonegação tributária, a Secretaria da Receita Federal do Brasil entra cena e por aí vai……Todos querem ser protagonistas!

A “opinião pública” se mostra entusiasmada com tanto zelo na busca por vestígios, baseada na crença de que “quanto mais investigação melhor”. Não há dúvida de que quanto mais profunda for a sondagem feita para averiguação dos fatos e identificação dos autores, melhor será para o interesse público, desde que respeitadas as garantias individuais. Ocorre que essa multiplicidade de esforços com a mesma finalidade, na maioria das vezes repetindo atos e procedimentos e conduzindo a semelhantes ou idênticas consequência, é, na verdade, violação institucionalizada e amplamente aceita do princípio constitucional da eficiência administrativa previsto no art. 37, caput.

Sabe-se que vige a independência das instâncias, mas o princípio da eficiência deveria conduzir, no mínimo, à atuação harmônica dos órgãos administrativos para otimização de esforços e custos financeiros, reduzindo a multiplicidade de procedimentos. Precisamos entender, e aceitar, que não basta limitar as espécies de recursos atuais, ou mesmos dizimar garantias, para reduzir a morosidade da atividade jurisdicional. É fundamental, também, condensar a atividade persecutória para que o sistema funcione com mais celeridade e eficiência. De nada adianta abreviar processos individuais, diminuindo ritos e garantias, se, concomitantemente, desperdiça-se energia com “retrabalho” das agências de punitividade.

Além desse aspecto, em que pese a dogmática interna expanda a compreensão do que vem a ser “independência de instâncias”, o problema também se coloca em relação ao princípio consagrado internacionalmente no Direito de proibição de bis in idem ou de double jeopardy.

No caso específico da cumulação de processos e sanções penal e civil por improbidade administrativa, por exemplo, a independência das instâncias vem fundamentada na parte final do § 4º do art. 37 da CF que prevê a responsabilidade por atos de improbidade “sem prejuízo da ação penal cabível”. Com base nesse dispositivo, está consagrada, na doutrina e na jurisprudência, a possibilidade de responsabilização pelas duas vias.

O STF decidiu, na Reclamação 2138, que as condutas da Lei 8429/92 são também tipificadas na Lei 1079/50, como “crimes de responsabilidade”, e que, nos dois casos, estão submetidas ao mesmo regime jurídico, o político-administrativo. Por isso, as autoridades submetidas à Lei 1079/50 não podem ser responsabilizadas pela Lei 8429/92 em razão da proibição de bis in idem. O STF deixou assentado que a identidade dos ilícitos de improbidade administrativa, para fins de incidência do princípio do non bis in idem, é apenas com os “crimes de responsabilidade” (Lei 1079/50) e não com os “crimes comuns”. Isso porque a lei especial – Lei 1079/50, regulamentadora do artigo 85, V, da CF, prevaleceria sobre a lei geral – Lei 8429/92, regulamentadora do artigo 37, § 4º, da CF, ambas submetidas ao mesmo regime jurídico.

Todavia, quando os atos definidos como de improbidade administrativa coincidem com delitos comuns, há incidência de dois regimes jurídicos distintos, o político-administrativo e o penal, vigorando a regra da independência das instâncias e fazendo com que não se aplique em favor do acusado a vedação de bis in idem ou de double jeopardy.

Na ADIN 2797, o STF julgou inconstitucional a Lei 10628/2002 que acrescentou os parágrafos 1º e 2º ao art. 84 do CPP, por entender que a Lei atacada equipararia a ação de improbidade administrativa à ação penal. Em que pese o STF tenha reconhecido que a ação de improbidade “tem forte conteúdo penal”, decidiu que se trata de uma ação cível, submetida às regras gerais do direito processual civil e não do processual penal. Nisso residiria a distinção entre os regimes e afastaria a alegação de dupla punição pelo mesmo fato, já que o princípio do non bis in idem proíbe a aplicação cumulativa somente de penas de mesma natureza.

Ocorre que os julgamentos do STF passaram ao largo das normas estabelecidas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) a qual passou a integrar o Direito interno por meio do Decreto 628/92. O Pacto de São José da Costa Rica, diferentemente do Convênio Europeu sobre Direitos Humanos que proíbe a duplicidade apenas de sanções criminais, dá grande amplitude à cláusula do non bis in idem. Aquele proíbe que o mesmo acusado seja processado ou punido mais de uma vez pelos mesmos fatos, sem limitar a vedação à identidade de regimes jurídicos.[1] Esse entendimento restou manifesto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no julgamento do caso Loayza Tamayo v. Peru. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) também afirmou, no caso Sergey Zolotukhin v. Russia, que a CADH dá maior amplitude à Cláusula do non bis in idem do que a Convenção Europeia, dispensando esforço argumentativo decisório para identificar o carácter substancial da sanção ou do processo, se penal ou não.[2]

Essa interpretação, que é tanto da CIDH, quanto do TEDH, deverá ter efeitos para impedir a convivência de variados sistemas de punição no direito brasileiro, sobretudo o da improbidade administrativa com a via penal. Sobretudo, porque a CADH, no art. 23, item 2, só admite restrição aos direitos políticos – o que é possível mediante ação de improbidade – pela via da condenação criminal, aplicada em um processo penal com todas as garantias que lhe são próprias.

Esses são aspectos que o STF terá que, em algum momento, enfrentar, se não por compromisso com a eficiência administrativa, em razão das restrições das normas supranacionais da CADH, independente de considerá-las de estatura constitucional – para derrogar a parte final do art. 37, § 4º, e o art. 15, V, ambos da CF, ou apenas supralegal – para tornar sem efeito o artigo 12 da Lei 8429/92 na parte em que estipula a pena de suspensão dos direitos políticos (Cf. STF. Julgamento conjunto do RExt 349703, do HC 87585, HC 92566 e RExt. 466343).

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[1] Cf. Art. 8.4 da Convenção Americana dos Direitos Humanos: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.” Cf. art. 4º, § 1º, da Emenda nº 07 ao Convênio Europeu de Direitos Humanos: “No one shall be liable to be tried or punished again in criminal proceedings under the jurisdiction of the same State for an offence for which he has already been finally acquitted or convicted in accordance with the law and penal procedure of that State.(…).” (grifou-se)

[2] O TEDH tem firme que a classificação interna de cada país quanto à natureza do ilícito é meramente formal e não o mais importante, porque é possível que a adoção do rótulo de ilícito civil ou administrativo sirva apenas para afastar garantias estabelecidas pelo Convênio Europeu exclusivamente para processos penais.  Por isso, o TEDH entende que o termo “offence” no texto do Protocolo nº 7, art. 4º, precisa ser interpretado e aplicado de modo a garantir efetividade prática aos direitos, não apenas teórica ou ilusória. Assim, mesmo que um ilícito seja classificado pela legislação do Estado signatário como não-penal, a Corte de Estrasburgo tem aplicado o princípio do non bis in idem para impedir que o mesmo acusado seja submetido a um segundo processo sancionador para apurar as mesmas ofensas, ainda que sob regimes jurídicos distintos. Vide o caso Sud Fondi v. Italy.

DeniseLuz