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Preconceito, racismo ou injúria qualificada? Pouco importa! Com eles, perdemos todos…

Por Marcelo Crespo

Lamentavelmente em pleno século XXI ainda nos deparamos com manifestações de cunho preconceituoso proferidas por pessoas que praticam comportamentos inaceitáveis com a naturalidade de quem dá um passeio no parque. Apesar da característica intrincada do assunto, parece claro que manifestações preconceituosas são comuns, ainda mais agora, com o protagonismo das redes sociais em nosso cotidiano onde constantemente nos deparamos com evidentes discursos de ódio.

Foi o que vimos, recentemente, com o caso “Maju” (Maria Julia Coutinho), atual apresentadora da previsão do tempo no Jornal Nacional, que foi vítima de covardes e inescrupulosos ataques veiculados na própria página do noticiário no Facebook (aqui). Ficaram registrados na rede social frases como “Só conseguiu emprego no JN por causa da das cotas, preta macaca”, “Preta imunda”, “Só foi ela chegar aí que o tempo ficou seco igualmente a um carvão em cinzas”, entre outros absurdos. A respeito do caso, aliás, interessante a leitura dos artigos dos colegas Yuri Felix (aqui) e Felipe Bertoni (aqui) no “Canal Ciências Criminais”.

O caso “Maju” bem como outros que ganharam repercussão há um pouco mais de tempo, tais como o “Caso Grafite” (jogador de futebol ofendido em campo por adversário) – aqui e aqui – e o “Caso Aranha” (jogador de futebol ofendido por torcedores que entoaram gritos enquanto assistiam ao jogo) – aqui e aqui – são sonoros exemplos de como ainda temos muito a evoluir no convívio social.  Infelizmente pode-se notar, diariamente, por todas as redes sociais, uma série de manifestações que partem desde frases mal educadas, passando pelas preconceituosas, ingressando, ainda, nos discursos de ódio, que transitam pelos crimes contra a honra – calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP) – , esbarrando, ainda, em situações de incitação (art. 286, CP) e de apologia (art. 287, CP) ao crime.

No “Caso Aranha”, a menina que foi flagrada berrando ofensas (“macaco”) teve até a sua casa incendiada, em retaliação, o que é igualmente absurdo e merecedor de punição (aqui). Seu endereço foi descoberto por meio das redes sociais. Mas observações sobre a vingança privada ficarão para outro texto. Apenas quisemos registrar aqui a insanidade que circunda as redes sociais.

Tristemente, todos os dias casos assim ocorrem com pessoas que não são conhecidas pelo grande público, bastando, para comprovar tal ocorrência, uma rápida olhada nos fóruns de discussão de sites, blogs e redes sociais. Cremos que o acirramento dos debates político-partidários intensificados especialmente a partir das últimas eleições também auxiliaram este fenônemo, embora certamente não seja sua causa única.

Fato é que em muitos destes casos surgem manchetes, postagens e vídeos onde se diz que houve “Crime de Racismo”, o que nem sempre é correto, dando margem a interpretações errôneas pela sociedade. A importância em distinguir algumas condutas criminosas não repercute apenas quanto às penas a eles impostas, mas, verdadeiramente, quanto ao início das investigações e até mesmo sobre a existência ou não de ação penal.

Insta observar, portanto,  suas diferenças.

No que tange ao preconceito, a primeira regulamentação de que se tem notícas foi a Lei nº 1.390/51 em razão da propositura de Afonso de Melo Franco Arinos, motivo pelo qual ficou conhecida como “Lei Afonso Arinos”, a primeira lei que tratou do tema “preconceito” desde o Império. Essa lei, apesar da boa repercussão pela tentativa de coibir a discriminação racial no país, tipificava as condutas como contravenções penais, com sanções irrisórias (pena máxima de três meses de detenção). Foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que o combate mais duro se fez presente, especialmente pela mandato implícito de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLII, que dispôs que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Com o fito de atender o implícito comando Constitucional, nosso legislador editou, então, a Lei nº 7.716/89, posteriormente, alterada pelas leis nº 8.081/90, 9.459/97, 12.288/10. A lei nº 9.459/97 foi a que mais promoveu alterações, dispondo que seriam punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Note-se, no entanto, que a lei não definiu “racismo”, inserindo condutas “racistas” num rol, ao lado de outras, também preconceituosas e aplicáveis a quem discriminar por motivos que não apenas de raça/cor, estes tradicionalmente conhecidos como condutas racistas.

As condutas previstas na lei nº 7.716/89 são quase todas voltadas a questões de recusa ou impedimento de acesso físico a determinados locais (bares, hotéis, restaurantes, estabelecimentos comerciais, etc) ou a cargos públicos ou empregos em empresas privadas (os crimes estão previstos nos arts. 3 a 20 e as penas variam de um a cinco anos e multa). É, por dizer, o preconceito ativamento praticado com condutas impeditivas dos direitos dos cidadãos.

Neste sentido, não se confundem os crimes de preconceito da lei 7.716/89 com os crimes contra a honra, em especial a injúria qualificada prevista no artigo 140, §3º, do Código Penal, nos seguintes termos:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

 (…)

 §3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Verifica-se, neste ponto, que o Código Penal aborda uma situação bastante diferente dos casos da lei de racismo e, por isso, não se pode com eles confundir. A injúria quaificada pela questão racial configura-se pela conduta de quem se utiliza da etnia, cor, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência para injuriar alguém, ou seja, ofender a honra subjetiva da vítima (o conceito que ela guarda de si mesma). Não há discriminação ativa ou impeditiva de exercício de direitos como as previsões da lei nº 7.716/89. São, portanto, situações bastante distintas, embora se possa dizer que existam, em comum, elementos preconceituosos.

Enquanto na injúria qualificada pelo preconceito o agente atribui à vítima insultos com características preconceituosas; no racismo o agente segrega a vítima do convívio social em razão de sua cor, raça etc. O racismo é crime de gravidade maior (imprescritível e inafiançável), ao qual a lei atribui um tratamento mais duro ao autor (prescritível e afiançável).

Outra questão importante e que difere o tratamente penal das condutas diz respeito à investigação e à ação penal. A injúria qualificada (art. 140, §3º, CP) é crime cuja investigação depende de autorização da parte (Representação, que é uma verdadeira condição de procedibilidade) de forma que a denúncia só poderá ser oferecida se esta existir. Por seu turno, os crimes previstos na lei nº 7.716/89 são de ação penal pública incondicionada, de modo que sua investigação não depende de autorização ou pedido da vítima e a ação penal poderá ser oferecida pelo órgão do Ministério Público conforme sua opinio delicti de que há prova da materialidade do fato e indícios suficentes de autoria.

Concluindo, vemos que se tratam de crimes distintos, com penas bastante diversas e cuja investigação e ação penal igualmente são distintas. Certo é que, seja pela prática dos crimes de preconceito, seja pela injúria qualificada, perde a sociedade, perdemos todos.

_Colunistas-MarceloCrespo

Marcelo Crespo

Advogado (SP) e Professor

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