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Presunção de Inocência

Presunção de Inocência

A construção doutrinária do princípio da presunção de inocência não é recente. Já no século XVIII, Cesare Beccaria postulava que a liberdade de um homem só lhe podia ser retirada após a comprovação de violações pactuadas.

Com o florescer do respeito à liberdade, a dignidade da pessoa humana e a valorização dos direito individuais e sociais, a presunção de inocência passou a ser acolhida em praticamente todo o mundo civilizado, seja nas convenções internacionais seja nos ordenamentos dos países.

Cada um ao seu modo, e na forma de seu sistema jurídico, tem previsto que o estado natural das pessoas é o da liberdade e que uma pena de constrição dessa liberdade somente seria imposta após observados todos os direitos e garantias constitucionais, principalmente a observância da presunção de inocência.

O que se diferencia mundo a fora é o momento de alcance desse princípio. Na maioria dos países, a culpabilidade é reconhecida em dois graus de jurisdição. Porém, este não foi o entendimento adotado pelo nosso constituinte quando da CRFB/1988.

A presunção de inocência, em nosso ordenamento, ficou atrelada a ocorrência do trânsito em julgado da ação, ou seja, todo cidadão será presumido inocente, não cabendo a execução da pena até que todos os recursos possíveis para a situação sejam julgados.

Esse era o entendimento do STJ até Fevereiro de 2016, quando em votação do julgamento do HC 126.292, por maioria, admitiu que a decisão condenatória mantida em segundo grau já autorizaria a execução da pena ali contida, ainda que não esgotados recursos Especial e Extraordinário.

Essa mesma decisão foi mantida em liminar nas ADC´s N.º 43 e 44, e decisões do Agravo 946.246/SP e do HC 152.752, o que nos permite inferir que até a presente data, está mantido o entendimento jurisprudencial do STF de que a execução da prisão logo após a confirmação da condenação por Tribunal é cabível e não ofende a presunção de inocência.

Partindo da escolha do nosso perfil político, qual seja, o de Estado Democrático de Direito, implica em assentir que o constituinte quis igualar os homens na forma da Lei, porém não numa Lei fria e formal, mas sim numa Lei que leve em consideração toda a conjuntura social que compõe o Estado.

Neste sentido, o legislador permitiu florescer a ideia da construção de um Estado Democrático com diversos requisitos:

um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos […]. (SILVA, 2016).

Por este viés, é através da Constituição Federal, nas suas traduções, mandamentos e disposições que o país se alicerça, uma vez que a

Constituição da República é a norma maior, sendo o fundamento de validade material e formal do sistema.Advém disto o fato de que todos os dispositivos e interpretações possíveis, inclusive o de transformar substantivo em adjetivo – exclusivamente -como acontece com o art. 144, §4º, da CR, por exemplo, devem perpassar pelo controle formal e material, não podendo ser infringida ou modificada ao talante dos governantes públicos, mesmo em nome da maioria – esfera do indecidível -, dado que as Constituições rígidas, como a brasileira de 1988, devem sofrer processo específico para a reforma, ciente ainda, da existência de cláusulas pétreas. (ROSA, 2013, p. 37).

Para tanto, o constituinte, na própria CRFB/1988, definiu princípios fundamentais e garantias individuais que devem ser observados de modo que este Estado Democrático de Direito, o qual tem sua soberania no povo que elege seus representantes, seja alcançado. Neste aspecto, diversos são os princípios descritos na CRFB/1988, os quais se ampliam aos mais diversos campos e assuntos pertinentes a vida em sociedade.

Especificamente quanto ao Direito Penal, muitos são os princípios dedicados na Constituição. Eles orientam os aplicadores do direito na “correta interpretação e na justa aplicação das normas penais” (CAPEZ, 2017, p. 24). 

Como princípio base de todos os princípios aplicados ao Direito Penal, Capez entende que o da dignidade da pessoa humana é o princípio reitor de todo o regramento a ser disposto e apresentado pelo legislador.

Da dignidade da pessoa humana, por sua vez, derivam os outros princípios mais específicos, os quais propiciam um controle de qualidade do tipo penal, isto é, sobre seu conteúdo, em inúmeras situações específicas da vida concreta. (CAPEZ, 2017, p. 25)

Destarte, consagrando o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio norteador, pode-se inferir que no Estado Democrático de Direito, tanto na esfera do Direito Penal quanto na do Direito Processual Penal são desenvolvidos de forma que protejam os bens jurídicos assim considerados, e, que cumpram sua grande função que é limitar o jus puniendi a partir da norma geral de controle.

A não observação dos princípios constitucionais desestabiliza o Estado Democrático de Direito, dificultando a consecução dos seus fins, relegando à atos cometidos fora deste Estado, o teor de inconstitucionais. Isto posto, o Processo Penal é executado por uma série de princípios ordenados orientados por esse perfil político democrático que é nosso Estado, sendo que quanto mais democrático for esse perfil, “mais o processo penal se apresenta como um notável instrumento a serviço da liberdade individual” (TOURINHO FILHO, 2017).

Dentre os vários princípios que regem o processo penal, está a presunção de inocência. Os juristas não são unânimes em conceituá-lo. Barbagalo (2015) entende que

não foi utilizada a expressão “inocência” para designar a garantia processual, sendo que não foram poucos os autores que afirmaram (e afirmam) que a Constituição não reconheceu expressamente uma presunção de inocência, mas sim uma presunção de não culpabilidade. (BARBAGALO, 2015, p. 55).

Afirma ainda que

a Constituição brasileira utilizou a expressão universal em sentido negativo “ninguém”, autorizando interpretação de que, independentemente da qualificação que se adote (indiciado, réu, acusado, imputado), o manto da presunção da inocência protegerá a pessoa processada de qualquer tratamento abusivo.

Bento (2007, p. 77) salienta que na Constituição

a presunção de inocência, não está descrita de forma expressa, demonstrando uma lacuna quanto a verdadeira amplitude da presunção de inocência.

E continua, argumentando que

se tal observância tivesse sido privilegiada na CRFB/1988, seria atingido as seguintes garantias: primeiro, como regra de tratamento ao acusado; segundo, como regra de interpretação e valoração de provas e por último, como razoabilidade quanto a utilização das prisões provisórias.

Para Rangel (2017, 24) a terminologia “presunção de inocência” não é adequada, e portanto não a utiliza em seus apontamentos. Sugere, dentro do princípio sugerido na Carta Magna, que

se o réu não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, também não pode ser presumidamente inocente.

Entende o autor que a Constituição não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatório (art. 5º, LVII CFRFB/1988).

Em julgado recente o próprio Ministro Gilmar Mendes enfatiza a problemática do arranjo verbal que o constituinte deu ao princípio em discussão:

A norma afirma que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o que vem a se considerar alguém culpado. (Voto do Ministro Gilmar Mendes, no HC nº 126.292).

Em seus estudos, Lima (2017) adota o entendimento de que o princípio da inocência deve ser chamado de princípio da não culpabilidade, e, adverte que em nosso ordenamento, ambos são utilizados pela maioria dos juristas como sinônimos. Porém,

comparando-se a forma como referido princípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir-se à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado culpado. (LIMA, 2017, p. 43).

A natureza jurídica do princípio da presunção de inocência, conforme Luiz Flávio Gomes (1999) pode ser vista do ponto de vista extrínseco (formal) e intrínseco (substancial). Naquele,

o princípio da presunção de inocência configura um direito constitucional fundamental, é dizer, está inserido no rol das garantias fundamentais da pessoa (Art. 5º). Do ponto de vista extrínseco, é um direito de natureza predominantemente processual, com repercussões claras e inequívocas no campo probatório, das garantias (garantista) e de tratamento do acusado. Cuida-se, por último, como não poderia ser diferente, de uma presunção iuris tantum, é dizer, admite prova em sentido contrário (GOMES, 1999, p. 108-109).

O entendimento do princípio da presunção de inocência sob o ponto de vista de regra de prova e como regra de tratamento, tem origem em ordenamentos da common law (Civil Law e Common Law são sistemas jurídicos utilizados nos países), onde o princípio da presunção da inocência, apesar de reconhecido, não tem registro em norma escrita. Ambas regras são desdobramentos do in dubio pro reo.

A despeito de se considerar o conceito da presunção de inocência e sua a existência em várias ordens jurídicas, sua adoção nos países pode vir revestida de um entendimento diferente quanto aos parâmetros de aplicação e de sua valoração conforme o processo vai acontecendo.

São estes parâmetros, do quando aplicar e de como aplica-lo que estão acirram a discussão relacionada ao momento da execução da pena.

Àqueles favoráveis ao novo entendimento argumentam: que o duplo grau de jurisdição se encerra após o acusado ter revisto sua decisão de segundo grau no tribunal, sendo analisadas questões de forma e de direito envolvidas;  o efeito devolutivo dos recursos ao STF e STJ, impossibilitando neles a reanálise de questões materiais, e, necessidade de prova da repercussão geral do recurso extraordinário para aceitação; que o pressuposto para a decretação da prisão é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, conforme art. 5º, LXI da Carta de 1988; que a presunção de inocência, deve ser relativizada quando em análise do conjunto de princípios que rege o processo penal; e necessidade de efetividade da Justiça como exigência de Ordem Pública.

As posições contrárias sustentam a literal interpretação do art. 5, inc. LVII, enfatizando que o legislador optou por validar o trânsito em julgado de sentença penal condenatória como marco de culpabilidade, ou seja, todo cidadão processado é inocente até o exaurimento dos recursos, leia-se inclusão dos recursos extraordinário e especial.

Ainda que reconheçam a necessidade de medidas mais efetivas na seara penal, as quais venham a combater a impunidade e a criminalidade crescente, entendem os juristas contrários a posição atual do STF, que tal necessidade não pode vir a sobressaltos ferindo texto constitucional, e, ainda que concordem que a prisão já em segunda instância seria um bom remédio para combater a impunidade, entendem que a mudança deve vir a partir do texto constitucional, e não de uma reinterpretação, de um princípio constitucional de interpretação literal.

Apesar da discussão posta, e considerando a evolução histórica dos pressupostos processuais penais, mais especificamente do princípio da presunção de inocência, se constata que o homem tem garantido sua dignidade como pessoa portadora de direitos a duras penas.

Situações de indescritível ofensa a moral e ao corpo físico foram perpetradas em diversos momentos da história do homem. O que dizer da obtenção da confissão sob atos de tortura, ou da degola mediante gosto do imperador.

A evolução se constata em tratados e convenções internacionais e nas diversas constituições mundo a fora, os quais reconhecem a importância da presunção de inocência enquanto valoração das provas, e, enquanto regra de tratamento do acusado.

Em nossa CRFB/1988 a presunção de inocência está explicitada de uma forma diferente da maioria dos outros países, traduzindo, ela não expressa claramente para que se presuma a inocência, mas declara o momento em que alguém será considerado culpado, qual seja, o do trânsito em julgado.

A decisão do STF de validar a prisão antes do trânsito em julgado divide as opiniões dos juristas, e essa dificuldade de um entendimento uníssono desestabiliza a decisão. São de um primor irretocáveis votos favoráveis, as questões pragmáticas trazidas pelo Ministro Barroso, a questão na sensação de impunidade por conta da inúmera possibilidade de recursos, a sobrecarga dos Tribunais, (STF-STJ), a necessidade de valorização das decisões de primeira instância, tudo nos leva a crer numa necessidade premente de mudanças do até então status quo.

Destarte, o caminho escolhido para essa efetividade nos deixa de ouvidos e olhares atentos. Não podemos deixar de observar as competências do STF, que munido por certo de uma necessidade de justiça e efetividade diante de um clamor social, acaba por arguir para si função que não lhe compete, qual seja, a de legislar. Alguns não conseguem ficar indiferentes a taxatividade do artigo 5º, inciso LVII da CRFB/1988.

Convém trazer a reflexão o silêncio do legislativo diante de controversa situação. E tal silêncio pode ser constatado não somente com relação ao tema que se discute, mas também quanto a uma legislação que permite um sem número de recursos, os quais tornam de fato ineficiente o processamento da persecução penal.

Não querendo indicar o conteúdo do julgamento do STF como adequado ou inadequado, deixando tal julgamento a convicções dos leitores. Há que se pontuar a possibilidade da restrição de direitos constitucionais e garantias fundamentais em suposto momento específico de conjuntura política do país.

Neste aspecto, como bem afirmou o Ministro Marco Aurélio,

há de vingar o princípio da autocontenção.


REFERÊNCIAS

BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais: em busca da racionalidade do sistema processual penal brasileiro (recurso eletrônico). Brasília, TJDFT, 2015.

BENTO, Ricardo Alves. Presunção de Inocência no Processo Penal. São Paulo: Quartier Latim, 2007.

GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume único. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de janeiro, Lumen Juris, 2013.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Malheiros. 2016.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 17. ed. São Paulo. Saraiva. 2017.

Naiara Vicentini

Acadêmica do curso de Especialização em Direito Público da Esmesc

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