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O “novo” limite da presunção de inocência: breve análise crítica de alguns votos

O “novo” limite da presunção de inocência: breve análise crítica de alguns votos

Em outubro de 2016, em um dos episódios mais lamentáveis da história do Supremo Tribunal Federal, o Plenário da Corte, no julgamento de medida cautelar requerida no bojo de duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC 43 e ADC 44), decidiu, por apertada maioria de votos, que o início do cumprimento da pena pode ocorrer após a decisão de segunda instância, antes, portanto, do trânsito em julgado da condenação, não obstante a Constituição Federal estabeleça, de modo incontroverso, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Em termos claros, o Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de pessoas consideradas inocentes – sob o ponto de vista da Constituição Federal, o único que deveria prevalecer – poderem sofrer a sanção penal de modo antecipado. Em outras palavras, ainda que o marco jurídico-temporal da culpabilidade seja o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o guardião da constituição entendeu legítimo o início do cumprimento da pena sem a formação definitiva da culpa.

Além do resultado catastrófico, as fundamentações empregadas pelos Ministros que votaram a favor da execução antecipada da pena são lastimáveis. Destoam do cargo que ocupam.

A seguir, faremos uma breve análise crítica dos votos dos ministros Edson Fachin, que inaugurou a divergência vencedora, e Roberto Barroso, um dos mais relevantes constitucionalistas brasileiros. A análise aprofundada de todos os votos demandaria um livro bastante interessante (fica a dica!).

O Ministro Edson Fachin, ao inaugurar a divergência, aduz que “a República Federativa do Brasil tem sido questionada em organismos internacionais de tutela dos direitos humanos em razão da ineficiência do seu sistema de proteção penal a direitos humanos básicos”.

Para corroborar o seu posicionamento, o Ministro cita alguns casos em que o Brasil fora condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todavia, de maneira cômoda, o Ministro ignora o quadro de sistemática violação de direitos humanos que ocorre dentro dos estabelecimentos prisionais brasileiros, naquela época já relatado por organismos internacionais.

A grande “proeza” do voto é a interpretação da regra constitucional à luz da regra processual (infraconstitucional) que enuncia o efeito meramente devolutivo dos recursos especial e extraordinário (artigos 995 e 1.029, § 5º, ambos do CPC):

A disposição geral que exige o trânsito em julgado da condenação para produção de efeitos [regra constitucional reproduzida pelo art. 283 do Código de Processo Penal] não é incompatível com a especial regra que confere efeito imediato aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais, os quais não são ordinariamente dotados de efeito suspensivo.

Embora, no trecho acima transcrito, o Ministro tome como referência a regra insculpida no art. 283 do Código de Processo Penal (Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva), o enunciado infraconstitucional reproduz regras expressamente previstas na Constituição Federal (art. 5º, incisos LVII e LXI), de modo que a compatibilidade a ser avaliada seria a dos dispositivos do Código de Processo Civil com as regras constitucionais, não ao contrário.

Na mesma linha do Ministro Fachin, o Ministro Roberto Barroso inicia seu voto com a exposição de CINCO casos notórios de “impunidade” que – aparentemente na visão do Eminente Ministro – retratariam o perfil moroso de TODO o sistema de justiça criminal brasileiro.

Ao que parece o Ministro do órgão de cúpula do Poder Judiciário não sabe que, de acordo com o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária brasileira ultrapassa a marca dos 650 mil presos, dentre os quais 34% são provisórios (o que são 650 mil presos perto de cinco casos de “impunidade”?).

Na sequência, o Ministro aduz que a prisão somente após o trânsito em julgado da condenação (a regra constitucional) teria reforçado a seletividade do sistema penal. Logo em seguida, no entanto, o Ministro deixa claro que sua atual posição tem destinatário certo, qual seja o criminoso que tem condições financeiras de contratar os melhores advogados para defendê-los:

Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação. Não por acaso, na prática, torna-se mais fácil prender um jovem de periferia que porta 100g de maconha do que um agente político ou empresário que comete uma fraude milionária.

Ora, até chegar aos tribunais superiores, o sistema de justiça criminal já praticamente esgotou sua capacidade seletiva, operada primordialmente nas fases pré-processuais (legiferação, repressão policial e inquérito), conforme exemplificado pelo próprio Ministro.

Portanto, a “ampla possibilidade de recorrer” pouco ou nada diz acerca da seletividade a que o Ministro alude. E nada mais irracional do que “combater” a seletividade empurrando o maior número possível de pessoas pra dentro do sistema prisional.

Sob o pretexto de tornar o sistema penal mais justo (!), a decisão do Supremo Tribunal Federal, além de escandalosamente contrária à Constituição Federal, contribui de modo significativa para o agravamento do já colapsado sistema carcerário. Não é necessário que o tempo aponte os efeitos decorrentes da decisão.

A reversão desse entendimento é urgente!

Stéfano Avellar

Especialista em Direito Processual. Pesquisador. Advogado.

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