Presunção de inocência: princípio ou regra?
Presunção de inocência: princípio ou regra?
O texto desta semana é uma continuação do que foi publicado na semana passada. Enquanto naquele apontamos, de modo bastante singelo, algumas inconsistências observadas nas várias argumentações lançadas em dois votos, neste nos debruçaremos exclusivamente sobre um argumento trazido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, a seguir transcrito:
(...) Enquanto princípio, tal presunção pode ser restringida por outras normas de estatura constitucional (desde que não se atinja o seu núcleo essencial), sendo necessário ponderá-la com os outros objetivos e interesses em jogo. Na discussão sobre a execução da pena depois de proferido o acórdão condenatório pelo Tribunal competente, o princípio da presunção de inocência está em tensão com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos (prevenção geral e específica) e bens jurídicos (vida, dignidade humana, integridade física e moral, etc.) tutelados pelo direito penal, com amplo lastro na Constituição (arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Nessa ponderação, com a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, há sensível redução do peso do princípio da presunção de inocência e equivalente aumento do peso atribuído à exigência de efetividade do sistema penal.
Partindo da premissa de que a garantia da presunção da inocência é um princípio (e não uma regra), o Ministro Barroso conclui que, com a condenação criminal em segunda instância (e independentemente do caso concreto), a garantia constitucional insculpida no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal sucumbiria ante a exigência de efetividade do sistema penal. Este princípio prevaleceria sobre a presunção de inocência.
A despeito da precariedade do juízo de ponderação estampado na decisão, cabe aqui examinar a premissa na qual o Ministro alicerça o trecho do seu voto. Afinal de contas, a garantia da presunção de inocência é um princípio? Ou seria ela uma regra constitucional?
Vários são os estudiosos que se propuseram a divisar ambas as categorias normativas[1]. No entanto, principalmente a partir dos trabalhos de Ronald Dworkin (2010) e, posteriormente, Robert Alexy (2015), popularizou-se a classificação segundo a qual a diferença entre regras e princípios residiria na estrutura e no modo de aplicação de cada tipo normativo[2].
Em termos gerais, as regras seriam comandos definitivos (determinações) que, quando válidos e incidentes no caso concreto, devem ser integralmente aplicados. De acordo com Alexy (2015, p. 91),
“as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”.
De outro lado e a par de algumas dessemelhanças, ambos – Dworkin e Alexy – concebem os princípios como normas que possuem um atributo[3] que se manifesta durante sua aplicação no caso concreto: incidentes dois ou mais princípios colidentes sobre determinada hipótese (p. ex., a presunção de inocência e a efetividade do direito penal, após a condenação em segunda instância), ambos serão ponderados pelo aplicador, que, ao final do processo de sopesamento, determinará qual princípio prevalecerá, sem que, com isso, o outro perca sua validade. Disso importa que o conteúdo definitivo de um princípio seja fixado somente após o processo de ponderação.
De acordo com Alexy, princípios são, portanto, “mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”. (grifo nosso)
Embora, no momento, não possamos nos aprofundar nesses conceitos, não há dúvidas de que o Ministro Barroso lançou mão das concepções teóricas traçadas a partir dos estudos de Dworkin e Alexy.
Todavia, não é a mera qualificação – doutrinária ou jurisprudencial – de uma norma como princípio (no caso, princípio da presunção de inocência ou princípio da não culpabilidade) que lhe confere o atributo de poder ser concretizada em vários graus, a depender do caso concreto[4].
Na doutrina e na jurisprudência brasileiras, o emprego do termo princípio como qualificador de uma norma visa mais conferir um status de relevância jurídica do que apontar uma atribuição inata, no caso, uma dimensão de peso.
Basta notar que a jurisprudência e a doutrina qualificam como princípio tanto a segurança jurídica, que sequer encontra enunciado expresso na Constituição Federal, como a presunção de inocência, expressamente delineada no inciso LVII do art. 5º. Essa discrepância já é um indicativo do equívoco da premissa estampada no voto do Ministro.
Além disso, é o próprio texto do enunciado normativo que estabelece os limites da interpretação como processo do qual resulta a norma jurídica[5]. O conceito de trânsito em julgado, p. ex., é historicamente determinado como o termo final do processo, isto é, o fim da possibilidade de interposição de recursos contra a decisão.
Não cabe ao Supremo Tribunal Federal ou a qualquer de seus ministros redefinir o que seja trânsito em julgado ou simplesmente passar por cima desse limite juridicamente definido.
Dentro dos limites estabelecidos pelo enunciado constitucional não é possível extrair uma norma apta a ser concretizada em diversos graus. Isso porque o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal contém uma determinação precisa de que ninguém poderá ser considerado culpado até que sua condenação transite em julgado. Em outras palavras, a Constituição Federal proíbe incondicionalmente que o Estado trate alguém como culpado antes do trânsito em julgado da condenação.
O texto constitucional não deixa qualquer espaço para ponderações, para aplicação da presunção de inocência em diversos graus (mais forte na primeira instância e mais fraca na segunda). Enquanto o indivíduo dispuser de recursos, não poderá ser considerado culpado, cessando essa exigência tão logo transite em julgado a condenação.
NOTAS
[1] Em Teoria dos princípios, o professor Humberto Ávila exemplifica as distinções apresentadas por Josef Esser, Kral Larenz, Claus Wilhelm Canaris, Ronald Dworkin e Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. 10ª edição. São Paulo: Malheiros: 2009.
[2] Valemo-nos da concepção de norma como resultado do processo de interpretação do texto normativo.
[3] Dworkin denomina esse atributo como “dimensão de peso”.
[4] Crítico das concepções que atribuem características inatas às normas jurídicas, Humberto Ávila tece o seguinte comentário: A conexão entre a norma e o valor que preliminarmente lhe é sobrejacente não depende da norma enquanto tal ou de características diretamente encontráveis no dispositivo a partir do qual ela é construída, como estrutura hipotética. Essa conexão depende tanta das razões utilizadas pelo aplicador em relação à norma que aplica, quanto das circunstâncias avaliadas no próprio processo de aplicação. Enfim, a dimensão de penso não é relativa à norma, mas relativa ao aplicador e ao caso. Além disso, a atribuição de peso depende do ponto de vista escolhido pelo observador, podendo, em função dos fatos e das perspectivas com que se os analisa, uma norma ter maior ou menor peso, ou mesmo peso nenhum para a decisão (Op. cit., p. 61).
[8] Nesse sentido, Lenio Streck, em Os limites semânticos e sua importância para a democracia. Revista da AJURIS. Vol. 41, n. 135. 2014.
REFERÊNCIAS
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.