Prisão preventiva da mulher gestante: (ainda) uma avenida aberta para a arbitrariedade
Em outubro de 2015, Bárbara Oliveira, mulher negra, dependente química e grávida de nove meses, foi deixada na solitária após um surto, classificado como mau comportamento. Após gritar por ajuda durante toda a noite, acabou dando à luz na solitária, de onde saiu apenas no dia seguinte, com o bebê ainda preso pelo cordão umbilical. O caso, que sintetiza as inúmeras vulnerabilidades a que determinada camada da população está exposta, teve repercussão e gerou um amplo debate sobre a necessidade de políticas públicas capazes de garantir um tratamento digno às mães e grávidas presas, tendo em vista a dignidade humana e a proteção da primeira infância.
Preventiva da mulher gestante
De acordo com dados do Infopen de junho de 2019, o Brasil possui mais de 773 mil presos em unidades prisionais e nas carceragens das delegacias. Desses, 253,9 mil são provisórios (ainda sem condenação), totalizando 33% de casos de prisão preventiva.
Em um primeiro momento, no que se refere à prisão preventiva, faz-se necessária a análise das hipóteses de cabimento. Nos moldes do Código de Processo Penal, tal medida, excepcional, pressupõe o preenchimento de três requisitos, quais sejam: materialidade e indícios suficientes de autoria; garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para a aplicação da lei penal, quando houver perigo na liberdade do imputado (art. 312, parte final) – sendo este um conceito vago, impreciso e indeterminado, resultante em uma avenida aberta para a arbitrariedade – e cabimento (art. 313).
Especificamente em relação ao segundo requisito, periculum libertatis, nas palavras de Sanguiné
quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico […], na realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto do ponto de vista jurídico-constitucional, como da perspectiva político criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais de pena antecipada, incompatíveis com sua natureza.
Superada essa breve análise de cabimento da prisão preventiva, especificamente em relação às mulheres grávidas presas provisoriamente, bem como aquelas que são genitoras de crianças menores de doze anos, ou, independentemente da idade, portadoras de deficiência, em 2016, com o Marco Legal da Primeira Infância, ampliou-se as possibilidades de prisão domiciliar como alternativa à prisão preventiva, com vistas à proteção integral da criança, que não deve sofrer uma extensão da medida cautelar. Assim, conclui-se que, para além de um direito da genitora, trata-se de um direito da criança.
No ano de 2018, o STF reforçou a legislação através do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641. Mais do que isso, com a promulgação da Lei 13.769/18, que modificou o Código de Processo Penal, estabeleceu-se critérios objetivos para a substituição da prisão preventiva por domiciliar. Nesse sentido:
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Do relatório do habeas corpus retromencionado, observa-se que, com a alteração Código de Processo Penal para possibilitar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças, o Poder Judiciário vem sendo provocado a decidir sobre a substituição daquela prisão por esta outra, nos casos especificados pela Lei, porém, em aproximadamente metade dos casos, o pedido restou indeferido.
Ademais, o Ministério Público do IPEA concluiu que o aumento do encarceramento feminino, e logo do número de gestantes, puérperas e mães encarceradas demonstra que o sistema de justiça criminal vem ignorando recomendações de organizações internacionais contra o uso de prisão para essas mulheres. Ocorre que, uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá sempre fora da prisão e, se a legislação for cumprida, tanto em relação à excepcionalidade da prisão preventiva como no tangente à aplicação da prisão domiciliar, grande parte dos problemas que afetam a mulher no ambiente carcerário serão significativamente reduzidos.
No que se refere ao Estado do Rio de Janeiro, há seis anos a Defensoria Pública do Rio segue um protocolo voltado especificamente para as presas grávidas, puérperas e mães com filhos menores de idade1. A atuação vem sendo decisiva e reduziu a quatro o número de grávidas e lactantes ainda mantidas em cárcere em todo o Estado (número jamais visto antes). Desde o início da pandemia do novo coronavírus, das 31 gestantes ou mães que amamentavam, 25 foram beneficiadas com prisão domiciliar, uma teve a pena extinta pelo cumprimento e outra precisou passar por cesariana de urgência, com o óbito da criança.
Quase a totalidade das mulheres que tiveram direito a prisão domiciliar foram acusadas de crimes não violentos. Algumas ainda aguardam cumprimento da decisão judicial para deixar a prisão. Dois dos casos que resultaram em liberdade provisória foram levados pela Defensoria aos tribunais superiores, em abril de 2020. O Supremo Tribunal Federal converteu a prisão preventiva de uma mãe lactante em domiciliar após o pedido ter sido negado pelo Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A política institucional garantiu êxito nesse momento de pandemia. É um trabalho que começa nas unidades, onde os defensores identificam os casos, passa pela coordenação de Defesa Criminal e segue para os defensores que atuam nos processos judiciais.
REFERÊNCIAS
ACESSO À JUSTIÇA: Violência contra a mulher. Entrevistadora: Débora Diniz. Defensoras Públicas entrevistadas: Flávia Nascimento e Caroline Tassara. Diretoria de Comunicação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 29 mai. 2019. Podcast disponível em: encurtador.com.br/CPVZ5
SANGUINÉ, Odone. A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão Preventiva. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, Nota Dez, n. 10, p. 114.
1 https://defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10296-Em-dois-meses-25-gravidas-e-lactantes-foram-para-prisao-domiciliar
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