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O princípio da insignificância no descaminho: e se houver reiteração delitiva?

Depois de abordar, nas colunas anteriores (aqui e aqui), aspectos introdutórios sobre o princípio da insignificância nos crimes de contrabando e descaminho, e de realizar uma análise dos entendimentos dos Tribunais superiores acerca dos parâmetros de valor para a aplicação de aludido princípio, no âmbito do descaminho, trataremos, hoje, da aplicação (ou não) do princípio, ao crime de descaminho, quando há reiteração da prática delitiva por parte do agente. Isto é: há relevância ou irrelevância da habitualidade da conduta para configuração da insignificância, considerando, de consequência, o crime como “de bagatela”?

Relembremos: para a aplicação do princípio da insignificância, que tem o condão de retirar a tipicidade material de uma conduta, os parâmetros comumente utilizados são: a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

O objeto da coluna de hoje é analisar o ponto concernente ao reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, nos casos em que o agente comete crimes de descaminho, de forma reiterada.

Ou seja: levando-se em conta os parâmetros utilizados pelos Tribunais superiores quanto aos valores (conforme abordamos na coluna anterior), imaginemos a conduta do indivíduo que pratica um delito de descaminho, mas que já praticou o mesmo crime em outras oportunidades anteriores, ou foi autuado em procedimentos administrativos-fiscais, por tal motivo.

Utilizar a habitualidade, para fins de afastar a aplicação do princípio da insignificância, sob o fundamento de que não haveria reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, ou de que a conduta permanece típica materialmente por outro aspecto, não seria utilizar parâmetro que o tipo penal não prevê? Não seria adentrar à esfera do direito penal do autor, em vez de direito penal do fato? Não seria afastar a análise da conduta, para analisar a vida pregressa do sujeito? Vejamos as posições sobre o tema.

O Supremo Tribunal Federal tem entendimento de que não cabe a aplicação do princípio da insignificância aos crimes de descaminho, quando há reiteração no delito:

(…) A orientação deste Supremo Tribunal, confirmada pelas duas Turmas, é firme no sentido de não se cogitar da aplicação do princípio da insignificância em casos nos quais o réu incide na reiteração delitiva. (…) (HC 131205, Relatora: Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 06/09/2016, Processo eletrônico DJe-202 Divulg. 21-09-2016 Public. 22-09-2016)

O Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma, também não admite a aplicação do princípio da insignificância, quando o agente é reiteradamente autuado em processos administrativo-fiscais, quando há reiteração do descaminho:

(…) A decisão agravada está na mais absoluta consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, firmada no sentido da não incidência do princípio da insignificância nos casos em que o réu é reiteradamente autuado em processos administrativo-fiscais, como é o caso dos autos. 3. A orientação do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de não se cogitar da aplicação do princípio da insignificância em casos nos quais o réu incide na reiteração do descaminho. (…) (AgInt no REsp 1611926/RS, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 06/09/2016, DJe 15/09/2016)

No entanto, seria a habitualidade apta a gerar a inaplicabilidade do princípio?

Em posição contrária à elencada acima, a 4ª Seção, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, firmou entendimento no sentido de afastar a relevância da habitualidade para fins de aplicação de referido princípio. Vejamos:

(…) A 4ª Seção do TRF da 4ª Região, no julgamento dos Embargos Infringentes e de Nulidade nº 5005227-48.2012.404.7005/PR, em 04/09/2014, firmou entendimento no sentido de afastar a relevância da habitualidade para fins de aplicação do princípio da insignificância. (…) (TRF4, ACR 5011677-12.2014.404.7110, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, juntado aos autos em 15/09/2016)

Como critério explicativo de tal posicionamento, fizemos um recorte de pontos essenciais em fundamentação de recente decisão monocrática, proferida por magistrado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Fundamenta, nesse diapasão, após tecer importantes considerações sobre o princípio da insignificância, que:

(…) Habitualidade da conduta: O princípio da insignificância afasta a tipicidade da conduta. (…) Não é o somatório de condutas que determina a sua tipicidade, mas a coincidência desta com o tipo objetivo e a ofensa ao bem juridicamente tutelado. A habitualidade não é, pois, elemento essencial do tipo penal. (…) nos casos de descaminho, a persecução penal não pode ficar adstrita ao interesse tributário, sobretudo se considerarmos que, em regra, as mercadorias internalizadas irregularmente estão sujeitas a perdimento e, portanto, não sujeitas ao lançamento tributário. A reiteração da conduta é irrelevante para o tipo penal. O somatório de condutas atípicas pretéritas, bem como a existência de antecedentes, não tem o condão de transformar o agir atual em crime. O direito penal tem por objeto condutas específicas, e não pessoas, de modo que se rejeita a noção de direito penal de autor. A conduta praticada pode ou não ser típica, considerada em si mesmo. A existência de antecedentes ou a habitualidade na prática de condutas atípicas não pode tornar um fato, considerado irrelevante para o direito penal, como típico. (…) Nessa exata linha de conta, não se cogita do somatório dos valores apurados, a título daqueles impostos, em face de diferentes apreensões e/ou procedimentos de fiscalização tributária, devendo ser aferido o princípio da bagatela tendo por referência o montante relativo a cada conduta isoladamente, sob pena de que a definição de tipicidade dê vazão ao direito penal do autor, não exclusivamente do fato. Desse modo, filio-me à posição atual da 4ª Seção deste Tribunal no sentido de que a existência de registros administrativos de apreensões anteriores não autoriza que se deixe de aplicar o princípio da insignificância aos crimes previstos no art. 334, porquanto sua aferição deve ocorrer tendo em foco cada conduta isoladamente. (…) (TRF4, HC 5041879-88.2016.404.0000, OITAVA TURMA, Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, juntado aos autos em 22/09/2016)

O ponto central de discussão é: seria a reiteração apta a afastar o princípio da insignificância ao delito de descaminho? Não deveria cada conduta ser analisada individualmente, sob pena de estarmos no âmbito do direito penal do autor, em vez do direito penal do fato?

Como vimos, há posicionamentos em ambos os sentidos. O debate é, pois, necessário. Reiteradas vezes, aliás.

Thathyana Weinfurter Assad

Advogada (PR) e Professora

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