Prisão cautelar de Senador pode até ser bem intencionada, mas é inconstitucional
Por Bruno Milanez
O texto de hoje trata da prisão preventiva do Senador Delcídio Amaral, que estaria – em tese e em conluio com terceiros – intervindo indevidamente nas investigações decorrentes de desdobramentos da Operação Lava Jato. Segundo representação do Procurador Geral da República, o Senador tentaria intervir em estratégia defensiva de Nestor Cerveró, demovendo-o de sua intenção de celebrar acordo de colaboração premiada ou, caso efetivasse o acordo, que não citasse determinadas pessoas e fatos na colaboração.
Não pretendo analisar o mérito dos fatos – que se confirmados são de extrema gravidade – muito menos realizar qualquer análise ou apologia político-partidária, mas apenas e tão somente analisar a compatibilidade da solução dada ao caso pelo STF com a Constituição da República.
Adianto inclusive que, na qualidade de cidadão e a título de opinião pessoal, a solução constitucional ao caso não é a mais adequada e, portanto, creio que nesse ponto específico a Constituição deveria ser alterada. Porém, minha opinião não deve interferir na solução jurídica dada ao caso. E da mesma forma, creio que os Ministros do STF – e todos os juízes – não podem julgar com base em impressões pessoais, voluntarismos, solipsismos e boas intenções, mas com base nos limites constitucionais. Caso contrário, não há direito. Ou melhor, há direito, porém somente quando agradar a quem irá decidir (e quando não agrada, apela-se ao julgamento de acordo com a consciência).
Feitas essas considerações iniciais, passa-se ao caso concreto: o Procurador Geral da República, lastreado essencialmente em gravações ambientais realizadas pelo filho de Nestor Cerveró, representa pela prisão cautelar de Delcício Amaral, que estaria conluiado com terceiros para obstruir investigações em desdobramentos da Operação Lava Jato.
Na representação do MPF, assevera-se que o Senador e terceiros estariam “tecnicamente em estado de flagrância, uma vez que estão manejando meios para embaraçar, no plano de Operação Lava Jato, a investigação criminal que envolve a organização criminosa.” O flagrante, segundo a representação, seria pelo crime tipificado na regra do art. 2º, caput e § 1º, da Lei 12.850/2013 (pertinência à organização criminosa) e pela regra do art. 355, do CP (patrocínio infiel), este último em relação ao ex advogado de Nestor Cerveró.
Ainda no contexto da representação, evidencia-se o claro descontento pessoal do ilustre Procurador Geral da República em face da regra do art. 53, § 2º, da CR/88:
“O art. 53, § 2º, da Constituição da República proíbe a prisão de congressista, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável. A regra prevista no dispositivo é, aparentemente, absoluta, e a exceção, limitadíssima. Com efeito, a prisão cautelar não é cabível, na literalidade do dispositivo, em nenhuma das suas modalidades, nem mesmo com a elevada garantia do foro especial por prerrogativa de função. Por sua vez, a prisão em flagrante, além de fortuita, por depender da presença de autoridade no local e no momento do crime, ou logo após, somente é cabível em se tratando de crime inafiançável – a atual redação do Código de Processo Penal tornou afiançáveis, in genere, todos os crimes, permanecendo apenas a inafiançabilidade dos crimes hediondos e equiparados, porque da extração constitucional.
O tom absolutista do preceito proibitivo de prisão cautelar do art. 53, § 2º, da Constituição não se coaduna com o modelo de ser do próprio sistema constitucional: se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar.” – g.n. –
No que diz respeito a um suposto estado de flagrância, o MPF assevera ainda que “não é razoável, com efeito, e evoca a ideia de privilégio antirrepublicano, que, nem mesmo em havendo elevada certeza probatória, fronteiriça ao estado de flagrância, e razoável gravidade da conduta (…) o Poder Judiciário fique impossibilidade (sic) de exercer na plenitude a jurisdição criminal.”
O Ministro Teori Zavascki reconheceu o pleito do PGR legítimo – inclusive referindo diversos trechos do parecer ministerial nos fundamentos de sua decisão –, decretando a prisão preventiva do Senador, com fundamento na garantia da ordem pública e da instrução criminal. No que diz com a regra do art. 53, § 2º, da CR/88, o eminente Ministro assevera que o dispositivo “preserva incólume, no que diz respeito às imunidades (…), a regra geral segundo a qual, no âmbito das prisões cautelares, somente se admitiria a modalidade de prisão em flagrante decorrente de crime inafiançável”, porém, linhas adiante, pondera que “a mencionada incoercibilidade pessoal dos congressistas configura-se, por conseguinte, como garantia de natureza relativa, uma vez que o Texto Constitucional excepciona a prisão em flagrante de crime inafiançável (…).”
Com o devido respeito, mas a solução sugerida na representação do Procurador Geral da República e acolhida pelo eminente Ministro Teori Zavascki é incompatível com a Constituição, ainda que nesse aspecto possamos não gostar da solução constitucionalmente adequada ao caso concreto.
Cabe transcrever a regra do art. 53, § 2º, da CR/88:
Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
Antes de se adentrar a questão da correção ou não da representação do PGR e da decisão do STF sobre a prisão do congressista, cabe mais uma vez colocação pessoal: não concordo com a redação do texto constitucional nesse aspecto e acredito que, em hipóteses excepcionalíssimas, deveria ser admitida a prisão cautelar (preventiva e/ou temporária) de Senadores e Deputados Federais. E pelo que se lê da representação do MPF e da decisão do STF, o Procurador Geral da República e o Ministro Teori Zavascki pensam da mesma forma.
O problema é que a Constituição vedou a prisão preventiva e/ou temporária de Deputados Federais e Senadores da República desde a expedição do diploma, gostemos ou não da previsão constitucional. E se não gostamos da regra, devemos buscar a sua alteração pela via legislativa (no caso, por emenda constitucional) e não por artifícios de linguagem.
Mas no caso concreto, tanto a representação do PGR como a decisão do STF seguiram por outra senda, bastante conhecida, por sinal. Quando não se gosta de uma regra – e não se quer sua aplicação – inicia-se dizendo que a regra permanece válida, porém que não é absoluta – assim como nenhum direito é – e que no caso concreto, em face da proporcionalidade ou razoabilidade, a sua aplicação deve ceder em face das peculiaridades do caso concreto. Ninguém conseguiu sintetizar a questão melhor do que o min. Eros Grau, no julgamento do HC 95.009/STF:
“Tenho criticado aqui – e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a ‘banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios – porque não reproduzem as suas características – porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito.”
No caso que ora cogitamos, esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segundo a qual ‘não há direitos absolutos’. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor não temos direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos.” (Voto do Ministro Eros Grau no Julgamento do HC 95.009/STF)
Em suma, a regra do art. 53, § 2º, da CR/88 prevê que somente se admitirá prisão de congressista, após a diplomação, em caso de flagrante por crime inafiançável e em nenhuma outra hipótese. A regra não é absoluta, pois não veda todo e qualquer tipo de prisão, mas isso não significa que a exceção – a única exceção – possa ser alargada para caber em hipóteses nas quais não se enquadra. Basicamente, deve-se reconhecer que fora da exceção a regra é sim absoluta, senão não há regra!
Mas a situação não resume apenas ao não gostar da regra e buscar a sua não aplicação ao caso concreto. Foi-se além: criou-se nova hipótese de prisão preventiva decorrente de situação fronteiriça ao estado de flagrante, pois nenhuma das hipóteses legais que engendrassem o flagrante estava presente no caso concreto.
Há de se recordar que o flagrante (art. 302, do CPP) indica a existência de um crime que está ocorrendo ou acabou de ocorrer, ou seja, deve-se ter uma ‘certeza ocular’ da infração, o que não ocorreu no caso concreto. Nem mesmo asseverar que o crime de pertinência a organização criminosa é crime permanente – de modo a incidir a regra do art. 303, do CPP ao caso – permitiria o reconhecimento do flagrante no caso, pois mesmo nessas hipóteses a certeza visual da ocorrência do crime deve estar presente, o que não ocorreu.
Ademais, mesmo que se efetivasse flagrante pelo crime de organização criminosa, ainda assim estar-se-ia fora do âmbito de incidência do art. 53, § 2º, da CR/88, tendo-se em vista que somente cabe prisão em flagrante de congressista por crime inafiançável e, em conformidade com o texto constitucional, somente são inafiançáveis a prática do racismo, tortura, tráfico de drogas, crimes hediondos e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV). Obviamente, o crime de pertinência a organização criminosa não se enquadra em nenhum desses casos.
E ainda que existisse hipótese de flagrante por crime inafiançável, seria inadmissível, pela vedação constitucional contida na regra do art. 53, § 2º, da CR/88, a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Gostemos ou não, a regra referida vedou qualquer modalidade de prisão cautelar em relação a congressistas. Admite-se, é verdade, a prisão pré cautelar (flagrante por crime inafiançável), mas não cabe prisão temporária nem mesmo conversão do flagrante em prisão preventiva (ou decretação da preventiva sem prévio flagrante).
No caso, solução possível seria a decretação de medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, do CPP), mas não o atropelo de regras constitucionais para adotar uma decisão que joga para a plateia, agrada a população e inclusive revela opinião pessoal talvez acompanhada pela maioria, mas não atende aos ditames legais e constitucionais.