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A subversão da lógica da prisão como ‘extrema ratio’ no Brasil

A subversão da lógica da prisão como ‘extrema ratio’ no Brasil

Observa-se que a prisão surgiu como um instrumento substitutivo da pena de morte e das torturas cruéis e degradantes, o que de modo geral era fato corriqueiro em um período marcado pela crueldade e rigidez com que as leis penais eram aplicadas.

No entanto, salienta Greco (2015, p. 118) que “não somente os suplícios, como a forma degradante com que as pessoas eram presas, faziam com que o condenado preferisse a morte a viver em tais condições”.

Esse panorama não difere muito do quadro que a contemporaneidade apresenta. Com efeito, atualmente – e notadamente no Brasil – as prisões estão superlotadas, em condições estruturais e organizacionais precárias, não conseguindo realizar o fim ao qual se destina a pena, ou seja, ressocializar o apenado, beirando a medievalidade, como relembra Greco (2015, p. 98), ao abordar suas origens históricas:

As prisões, como local de efetivo cumprimento de pena, eram normalmente destinadas aos monges, que nelas ficavam recolhidos a fim de cumprir uma penitência, ligada a algum ato religioso. Daí, o nome penitenciária, utilizado para designar, nos dias de hoje, os lugares onde as pessoas cumprem suas penas.

As políticas criminais norte-americanas, assentadas sobre o paradigma repressivista da “lei e ordem”, contribuem para o agravamento do problema penitenciário contemporâneo, uma vez que tais políticas acabaram sendo “exportadas” para outros países – dentre os quais se encontra o Brasil – como espécie de panaceia universal no enfrentamento à criminalidade.

Como salienta Greco (2015, p. 180), a situação caótica das penitenciárias na atualidade deve-se:

Também em parte a uma opção política, adotada pela maioria dos países, que foi o movimento de lei e ordem, ou seja, de Direito penal máximo, em que os governos que não cumpriam suas funções sociais, viam no Direito penal a solução dos seus problemas. Os países que adotaram, como regra, essa política equivocada, essa cultura da prisão, transformaram-se, de Estados sociais, em Estados penais. Seus sistemas carcerários passaram a não comportar o número de pessoas que deveriam cumprir suas penas.

Sob vários aspectos, a prisão revelou-se uma experiência falha, que não foi e nem se demonstrou capaz de cumprir os objetivos a ela assinalados. Neste sentido, no que diz respeito à prevenção de novos delitos, o método não é eficaz no convencimento daqueles dispostos a praticar uma conduta ilícita. Ou seja, a conhecida seletividade de nosso sistema penal encarrega-se de levar à prisão os mesmos indivíduos de sempre: os negros, pobres e os de baixa escolaridade.

O Direito Penal, neste sentido, atua de forma seletiva, “escolhendo” seus clientes preferenciais. Desta maneira, o Direito Penal possui a missão de tutelar os bens jurídicos sociais, tornando-se um Direito Penal voltado à repressão e punição, não apenas do crime, mas principalmente do criminoso, que passa a ser constituído como verdadeiro “inimigo” do Estado. Conforme entendimento de Jakobs (2005, p. 49):

Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído.

Como sustenta Jakobs (2005, p. 42), no que se refere ao inimigo, “o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais”.

Desta forma, retirar o “inimigo” das ruas e aprisioná-lo em algum lugar, livre de qualquer garantia, faz com que a população, compreendida como “amiga”, tenha ou receba a sensação de segurança por parte do Estado. No Brasil contemporâneo:

Essa seletividade assume proporções incomensuráveis, visto que a partir delas, se somam à população historicamente perseguida pelo sistema punitivo na condição de espólio da escravidão os contingentes populacionais que são banidos do mercado de trabalho e da sociedade de consumo porque não dispõem de meios de participação efetiva. Ou seja, são consumidores falhos para os quais só resta a segregação, tanto pelo encarceramento em massa e da eliminação pura e simples a partir da intervenção violenta do sistema punitivo (WERMUTH, 2011, p. 120).

O sistema prisional no Brasil revela, então, uma realidade bem distante do ideal defendido pelos teóricos da prisão. Uma dura realidade é a de que o estado de exceção, inerente à arbitrariedade do poder soberano, transforma-se na regra do sistema prisional.

Conforme Ruiz (2016, p. 84), a partir da teoria de Agamben, “o sistema prisional no Brasil tornou-se um espaço onde a vida do detento sobrevive na exceção”. O espaço da prisão não é controlado efetivamente pelo Estado de direito, mas pelas gangues criminosas que dominam as prisões com quase total arbitrariedade.

Demonstra-se, assim, que a seletividade que pauta a atuação dos órgãos que integram o sistema penal brasileiro, evidencia que a principal função realizada por ele na atualidade, é a mesma daquela que sempre foi desempenhada na nossa sociedade, servir como instrumento de controle e disciplina das classes subalternas, de forma a preservar a segurança e os interesses das classes hegemônicas.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

JAKOBS, G. MELIÁ, M. C. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luis Callegari; Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005

GRECO, R. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.

WERMUTH, M. A. D. Medo e direito penal: reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

Ana Paula Favarin

Mestre em Direitos Humanos. Pesquisadora. Advogada.

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