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Processo Penal à moda Directorium Inquisitorum

Processo Penal à moda Directorium Inquisitorum

Plurais são as obras que apontam os resquícios inquisitoriais que respaldam a prática processual penal brasileira. Contudo, pouco se apresenta em relação à dogmática inquisitorial para além da mera menção abstrata a esse tema.

Visando ‘‘dar corpo’’ a esta alusão ao caráter inquisitorial do processo penal contemporâneo, resta imprescindível a análise da obra Directorium Inquisitorium, tratando-se de um verdadeiro manual de inquisição e que, infelizmente, possuí notórias interseções com o processo penal pátrio.

Em 1376, Nicolau Eymerich, inquisidor geral do papa Inocêncio VI, escreveu a obra Directorium Inquisitorum (Manual do Inquisidor) no intuito de codificar e padronizar a compreensão de fenômenos como bruxaria, magia, heresia, bem como estabeleceu um rito ao processo de acusação e condenação daqueles considerados hereges.

Nada obstante o cenário pouco ‘‘constitucional’’ pelo qual encontrava-se envolto Eymerich quando da confecção de seu manual, existem expressivas afinidades entre o conteúdo da referida obra e o Processo Penal brasileiro, desde o inquérito policial, perpassando pela instrução em juízo e até mesmo diante das novidades decorrentes da justiça penal negocial. Encontra-se muito da inquisição no processo penal tupiniquim.

Dentre as principais características inquisitoriais verificadas no Processo Penal brasileiro destacam-se, por exemplo, a supressão da defesa no Inquérito Policial, o ativismo judicial diante da produção de provas ex officio e cita-se ainda a barganha processual penal que atribui especial relevância à delação/confissão do acusado.

No tocante ao inquérito policial, em consonância com o artigo 5º do Código de Processo Penal, em se tratando do início do referido procedimento, verifica-se a necessidade da narração do fato com todas suas circunstâncias, da individualização do indiciado com todas suas características, da exposição das razões que fundam a presunção de autoria e ainda da indicação de testemunhas, sua profissão e residência.

Extrai-se do Manual de Inquisição que uma das formas de início do processo inquisitorial dá-se por intermédio da ‘‘denúncia’’:

o inquisidor mandará que escrevam num caderninho preparado para isso – um por diocese – as suas denúncias e o nome de quem denuncia, o seu próprio nome, os nomes das testemunhas e a indicação da cidade ou aldeia em que vivem. (Eymerich, p.103)

Ainda conforme o Art. 5º, § 3o   do CPP, verifica-se que:

§3º  Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.

E, de forma análoga, dispõe o Manual da Inquisição:

se não existir confissão espontânea, nem tampouco acusação ou delação, e sim boatos, numa determinada cidade ou região, de que alguém disse ou fez alguma coisa contra alguém fez alguma coisa contra a fé ou em favor dos hereges, neste caso, o inquisidor deverá investigar, não na instância de uma das partes, mas segundo suas próprias atribuições. É uma maneira muito comum de ‘’processar’’. E, se os boatos chegarem aos ouvidos do inquisidor pela boca de pessoas honestas e bem comportadas, o processo começará, sempre diante do escrivão e de duas testemunhas , pela lavratura dos autos, em que se transcreve o teor desses boatos. (Eymerich, p.108)

Em se tratando de instrução, o ativismo judicial decorrente da permissividade do art. 156 do CPP se funda em latente inquisitoriedade, haja vista tratar-se de verdadeira afronta à necessária imparcialidade do juiz, pois que, em termos pouco jurídicos, quem procura sabe o que quer encontrar.

Tal como no referido artigo, leciona o Inquisidor Geral que a autoridade julgadora deve, sim, possuir poderes para uma postura ativa, vez que não conseguirá condenar o herege se não puder fazê-lo buscando provas, interrogando testemunhas, dentre outras medidas entendidas como necessárias a ambição condenatória. (Eymerich, p.214)

Ainda em se tratando das similitudes entre o Directorium Inquisitorum e o Código de Processo Penal, especial destaque possuem as inovações oriundas da banalização da delação premiada e do direito penal negocial.

Em conformidade com a Lei 12.850/2013 vulgarmente conhecida como Lei do Crime Organizado, tem-se como meio de produção de provas a chamada ‘‘colaboração premiada’’.

Precisamente em relação ao art. 4º da aludida legislação, verifica-se que aquele que colaborar com a investigação ou com o processo criminal poderá gozar da redução da pena, da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos ou ainda do perdão judicial.

Novamente verifica-se uma íntima afinidade entre a disposição legal atual e o Manual do Inquisidor, segundo este:

Quem durante a época do perdão, se entregar voluntariamente, admitindo ter acreditado em alguma heresia, ajudado hereges etc, não seria acusado, denunciado nem citado para comparecer: Confessa espontaneamente. O inquisidor atenuará o seu rigor. Porém, estará atento a forma pela qual vão querer apagar suas culpas. (Eymerich, p.214) 

Ainda em completa consonância com a lei do Crime Organizado, Eymerich (p.115) leciona que no caso de ‘‘processo por delação’’ faz-se a citação das testemunhas apontadas, dando especial ênfase àquelas que parecem saber muito.

Tal ‘‘orientação’’ proposta pelo Inquisidor Geral em muito se assemelha às praticas trivialmente utilizadas no processo penal atual, de modo que as benesses oriundas em ser o primeiro a ‘‘colaborar’’ ou a adoção de estratégias como o ‘‘dilema do prisioneiro’’ demonstram a latência da inquisitoriedade nas entrelinhas do processo penal contemporâneo.

As similitudes verificadas não se apresentam como crítica de ordem meramente acadêmica, a bem da verdade, a inquisição representa o antônimo de um processo penal constitucional, humano e digno. Em se tratando de Directorium Inquisitorum o direito à defesa é abordado em capítulo nomeado como ‘‘Obstáculos à rapidez do processo’’.

Em tempos de aspiração de uma eficácia processual penal cosmética pautada estritamente no clamor público e em uma celeridade lesiva, não tardará à defesa ser objetivamente malquista e frente à deterioração processual penal instaurada cumpre lembrar que ‘‘quem tem o juiz por acusador, precisará de Deus como defensor’’.

Eis o objeto da necessária resistência à inquisição jurídica instaurada.


REFERÊNCIAS

EYMERICH. Nicolau. Directorium Inquisitorum – Manual dos Inquisidores. Brasília: Rosa dos Ventos. 1993.

Leandro Muniz Corrêa

Advogado. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

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