A produção científica em direito e literatura no Brasil
A produção científica em direito e literatura no Brasil
A literatura é uma coisa boa, Várienka, muito boa; disso me inteirei anteontem através deles. É algo profundo! É algo que edifica e fortalece o coração das pessoas, e há muita coisa, ainda escrita, sobre tudo isso num livro. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 74).
Notas sobre a produção científica em direito e literatura no Brasil
O presente texto da Comissão de Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais irá analisar a produção científica dos trabalhos de direito e literatura no Brasil, demonstrando sua importância e relevância na construção do direito.
Com base na pesquisa desenvolvida pelos autores Pedro Fernandez Ruiz e Iara Pereira Ribeiro, serão analisados os trabalhos apresentados nos Encontros Nacionais do Conselho de Pesquisa e Pós graduação em Direito (CONPEDI), dentro da temática do direito e literatura.
Nesse sentido, observam os autores o crescimento dos grupos de estudo e pesquisa na abordagem do direito e da literatura, demonstrando ser fundamental uma análise da importância do estudo da literatura, bem como analisando como essa interdisciplinaridade pode ser benéfica na aplicação do direito.
Isso pois o direito não se trata de algo estático. As legislações alteram-se frequentemente, da mesma forma que a sociedade e seus anseios mudam, sendo necessária uma readequação para atingir os fins sociais e os direitos e garantias individuais preceituados pela constituição da república.
Para atingir uma eficácia abrangente na sociedade, a constituição deve, portanto, adequar-se às mudanças sociais para não permanecer uma letra morta, como preceitua Ferdinand Lassalle na obra A Essência da Constituição. E o que vem sendo desenvolvido nos estudos de direito e literatura no Brasil? Quais os autores mais citados, as peças de teatro, letras de música e filmes?
São com esses dados que os autores analisam os projetos de pesquisa apresentados no CONPEDI em mais de 132 artigos, entre os anos de 2010 e 2016. Na análise, observaram os autores que a maior parte das pesquisas realizadas dentro da temática do direito e da literatura são de obras literárias, seguidos por filmes, obras musicais e obras teatrais (RUIZ; RIBEIRO, 2017, p. 414).
Nas obras literárias, alguns autores são citados de forma mais frequente, como Franz Kafka (O processo), George Orwell (1984), William Shakespeare (O mercador de Veneza), José Saramago, Clarice Lispector e Machado de Assis. Já no tocante aos filmes analisados e apresentados na pesquisa, observou-se a ausência de filmes nacionais, sendo analisados somente produções cinematográficas estrangeiras.
Fato é que todas essas obras literárias, bem como as músicas e produções cinematográficas, são fundamentais para analisar o mundo à nossa volta de forma mais abrangente e profunda. A intersecção do direito e literatura possibilita aos operadores do direito uma observação mais acurada e sensível do mundo, permitindo uma reflexão muito mais sensível e humana.
Nesse entendimento, aduz Paulo SILAS FILHO (2017):
a literatura não é só uma forma de manifestação artística, é, também, um relevante elemento de evolução e transformação pessoal e social.
Isso porque a literatura possibilita uma análise muito profunda e detalhada sobre os problemas sociais, sobre a desigualdade e demais mazelas, contribuindo para a compreensão do mundo além da realidade que nos toca.
O direito “da”, “como” e “na” literatura
Posteriormente à análise das obras literárias, filmes e músicas analisadas nos projetos de pesquisa apresentados no CONPEDI, RIBEIRO e RUIZ (2017, p. 419) destacam uma classificação do direito “da”, “como” ou “na” literatura, possibilitando um entendimento mais amplo sobre as pesquisas realizadas.
Dessa forma, os artigos classificados como direito “da” literatura foram aqueles que abordavam sobre a importância do incentivo às atividades artísticas e culturais.
Já os artigos com a abordagem direito “como” literatura trabalharam com a linguagem, interpretação e narrativas nas histórias apresentadas.
Os artigos apresentados e classificados como direito “na” literatura foram aqueles com abordagens e reflexões jurídicas a partir das obras literárias, refletindo sobre os temas justiça, poder e demais normas do ordenamento jurídico. Essa abordagem nos projetos de pesquisa apresentados correspondeu a 73,49% dos artigos analisados.
A produção científica em direito e literatura no Brasil
Com esses dados e com o crescimento da produção científica nos temas de direito e literatura, observa-se que a literatura com o direito possui somente pontos positivos em sua aplicação, a partir do momento que expande os horizontes dos operadores do direito para a realidade a sua volta.
Assim, ressaltam RIBEIRO e RUIZ (2017, p. 422) que prevalece no Brasil a produção da pesquisa na classificação denominada “direito na literatura”, que, como salientado, é a pesquisa que aproxima a interpretação e reflexões jurídicas com base nas obras literárias analisadas.
A literatura é fundamental, portanto, para compreensão de fenômenos e impulsos humanos como alegria, raiva, desespero, preocupações, ansiedade, ódio e vingança, instintos inerentes a qualquer indivíduo nas mais diversas situações cotidianas.
Um clássico de literatura e das obras teatrais ainda na atualidade, sendo um dos mais citados e estudados, é Shakespeare, que traduz de forma magistral todos esses instintos humanos e sentimentos em demasia, podendo cada peça ser analisada de acordo com uma temática social.
Em Júlio César, para analisar a ganância, ambição e questões políticas; em Macbeth, questões como ira, vingança e poder, Hamlet refletindo sobre questões existenciais, sentido da vida e inúmeras outras questões. Otelo, para a reflexão da violência contra à mulher, vingança, paixão.
Cada peça possui um conjunto de elementos fundamentais para a compreensão de todos esses sentimentos humanos, aflorados em suas mais distintas formas.
Júlio César, na obra de William Shakespeare, possui um dos personagens mais conhecidos da história, até por aqueles que nunca tiveram contato com as obras do autor. Afinal, quem nunca ouviu a famosa frase retratando uma das maiores traições da literatura:
Até tu, Brutus?
Brutus, em momentos antecedentes à tragédia que sucede a obra shakesperiana, elucida de forma muito clara esse sentimento de conspiração e ambição quando aduz (HELIODORA, 2017, p. 332):
BRUTUS
Ele tem de morrer; e quanto a mim
Não tenho causa para repudiá-lo,
Senão a pública. Se coroado,
Como isso o mudaria? É esse o ponto.
É a luz do sol que faz sair a cobra,
Exigindo cuidados no pisar.
Se o coroamos damos-lhe um ferrão,
Perigo pra ele usar a qualquer hora.
O abuso da grandeza é separar
O poder do remorso. E, na verdade,
Em César jamais vi a emoção
Pesar mais que a razão. Mas é sabido
Que a humildade é a escada da ambição,
Para qual sempre se volta o carreirista;
Mas uma vez alcançando o ponto máximo,
Ele dá suas costas à escada,
Olhas pras nuvens, despreza os degraus
Por que subiu. Talvez César o faça;
É impedi-lo pra evitar. E se à causa
Falta hoje base pelo que é agora,
Digamos antes que o que é, crescendo,
O levaria a tais atos extremos.
Temos de vê-lo um ovo de serpente
Que chocado, segundo o seu destino,
Virá a ser maligno e deve então
Ser morto inda na casca.
E, em todas as peças de Shakespeare, essas questões sociais e sentimentos aflorados em demasia podem ser analisadas de forma a ajudar os leitores a compreender o mundo de forma muito mais ampla, entendendo as complexidades inerentes à vida em sociedade, aos sentimentos humanos, seus anseios e ambições.
A intersecção do direito e literatura mostra-se fundamental na atualidade, em um mundo cada dia mais complexo e diverso, possibilitando uma análise muito mais sensível nos casos concretos. Isso porque somente a lei não é capaz de elucidar todos os problemas reiteradamente tratados no cotidiano forense.
REFERÊNCIAS
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente pobre. Trad. de Fátima Bianchi. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
HELIODORA, Barbara. Grandes obras de Shakespeare. Peças históricas inglesas e romanas. Nova Fronteira, 2017. Organização: Liana de Camargo Leão. Tradução: Barbara Heliodora.
RUIZ, Pedro do Amaral Fernandez; RIBEIRO, Iara Pereira. Produção científica em direito e literatura no Brasil. Disponível aqui., v. 2, 2017, ISSN: 2525-3913, acesso em 20 de fev. de 2019.
SILAS FILHO, Paulo. O direito pela literatura: algumas abordagens. 1ª edição, Florianópolis, Empório do Direito, 2017.
Nota: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pela colega Paula Abiko, foi feito com base no texto Produção científica em direito e literatura no Brasil, de Pedro Ruiz e Iara Ribeiro. – publicado nos anais do V CIDIL. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)
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