ArtigosDireito Penal

Produtos vencidos expostos à venda, por si só, configuram crime contra as relações de consumo?

Produtos vencidos expostos à venda, por si só, configuram crime contra as relações de consumo?

Os crimes contra as relações de consumo estão previstos no art. 7º da Lei 8.137/90. Entre eles, no inciso IX, encontra-se o crime de vender produtos em condições impróprias:

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:

(…)

IX – vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;

Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.

Mas, o que seriam condições impróprias para consumo?

Como se vê, trata-se de uma norma penal em branco, ou seja: para verificar quando o crime de fato está configurado é preciso procurar a complementação em outro diploma, e no caso em tela, devemos consultar o Código de Defesa do Consumidor (art. 18, § 6º, inciso I):

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

(…)

§ 6° São impróprios ao uso e consumo:

I – os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos.

Seguindo as diretrizes do Código de Defesa do Consumidor, uma das hipóteses de produtos impróprios ao consumo está relacionada com a questão temporal, isto é, quando o produto está vencido. No entanto, ainda nos cabe outro questionamento – o qual é o foco deste artigo: o simples fato do produto estar vencido possui o condão de ensejar o crime contra as relações de consumo? A resposta só pode ser negativa, em razão de 2 (dois) grandes motivos:

O primeiro deles é por conta do caráter subsidiário do Direito Penal, pois este só pode e deve ser acionado quando outros ramos do Direito, que também exercem a função de controle social (ex.: Direito Civil, Direito Administrativo, etc), falham.

Conforme acima mencionado, o Código de Defesa do Consumidor possui mecanismos capazes de controlar a exposição de produtos vencidos à venda. Assim, não se justifica o acionamento do ramo mais invasivo do Direito apenas pela questão relacionada ao prazo de vencimento.

Roxin discorre de forma pontual sobre essa característica:

A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos. (ROXIN, Claus. Derecho penal, t. I, p. 65. – g.n.).

O segundo motivo é que para a configuração do crime previsto no art. 7º, inciso IX, da Lei 8.137/90, não basta que a mercadoria exposta à venda esteja com o prazo de validade expirado. É de suma importância a realização de laudo pericial a fim de constatar se o produto está adequado ao consumo ou não, pois como o crime em apreço deixa vestígios, a perícia é imprescindível (art. 158 do Código de Processo Penal).

Esse é o entendimento dos Tribunais Superiores, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê abaixo:

  • Decisão proferida pelo ministro Joel Ilan Paciornik nos autos do  RHC n.º 91.502/SP:

Com efeito, esta relatoria não ignora que a jurisprudência do STJ oscilou acerca do tema, todavia tem se firmado no sentido de que o delito de expor à venda produtos impróprios para o consumo deixa vestígios, razão pela qual a perícia é indispensável para a demonstração da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do CPP. Assim, a ausência de perícia autoriza o trancamento da ação penal por falta de justa causa. (…) Como se vê, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência no sentido de que para a configuração do delito descrito no art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/1990 é indispensável a realização de perícia que demonstre a impropriedade dos alimentos para consumo, sob pena de configuração de responsabilidade objetiva. Nessa esteira, carece de justa causa a ação penal proposta pelo Ministério Público sem exame pericial, circunstância que autoriza o trancamento da ação penal. (…) Ante o exposto, voto pelo provimento do recurso ordinário em habeas corpus para determinar o trancamento da Ação Penal. (RHC n.º 91.502/SP, STJ, rel. min. Joel Ilan Paciornik, DJe 01/02/2018).

  • Decisão proferida pelo ministro Rogério Schietti Cruz nos autos do RHC n.º 69.692/SC:

Na espécie, o laudo pericial que serviria à aferição da possibilidade de lesão (ou risco de lesão) à saúde humana, dos gêneros alimentícios apreendidos no estabelecimento comercial administrado pelo recorrente nem sequer foi produzido. Inexistente, portanto, prova direta, necessária, in casu, à conformação dos fatos ao elemento objetivo do tipo – produto “impróprio para o consumo” –, reserva-se apenas ao Direito Administrativo ou Civil eventual responsabilização e punição pelo descumprimento de normas relativas à conservação e exposição, para venda, de gêneros alimentícios. Afinal, o violador da proteção devida ao consumidor poderá não sair ileso nessas esferas, porque ali pode ser responsabilizado objetivamente por eventuais danos ao consumidor e, ainda, multado administrativamente, o que se mostra eficaz e, o mais importante, mais consentâneo com o sistema jurídico pátrio. (…) Portanto, in casu, concluo pela existência de constrangimento ilegal, consubstanciado na ausência de prova da materialidade delitiva, uma vez que sequer produzido laudo pericial para atestar a impropriedade dos alimentos. É insuficiente a ilação de que os produtos apreendidos são impróprios para o consumo humano com esteio em características sensoriais comuns ou, exclusivamente, em virtude da ausência de informações obrigatórias de rotulagem (como denominação do produto, prazo de validade, data de fabricação/fracionamento), e não, como exigido, por aferição técnica, direta, acerca da impropriedade da mercadoria para o consumo.” (RHC n.º 69.692/SC, STJ, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 13/06/2017).

Portanto, ainda que o crime em debate seja formal – não depende da ocorrência de efetivo prejuízo ao consumidor -, é necessário averiguar, por meio de laudo pericial, a impropriedade da mercadoria, pois só assim será possível verificar a materialidade do delito. Ações penais iniciadas em desacordo com o entendimento citado estão enraizadas na famigerada responsabilidade objetiva, ou seja, são ilegais!

Gustavo dos Santos Gasparoto

Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduando em Ciências Criminais. Advogado criminalista.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo