Projetos de lei criminalizam a divulgação de fotografias ou filmagens de tragédias humanas
Projetos de lei criminalizam a divulgação de fotografias ou filmagens de tragédias humanas
Na segunda-feira passada (27/05) o Brasil se surpreendeu com a súbita notícia da morte do cantor sertanejo Gabriel Diniz. O avião onde o mesmo trafegava veio a cair no sul do estado de Sergipe, ocasionando também a morte também de mais três pessoas que estavam a bordo no voo.
Após a fatalidade, vídeos e fotos da tragédia começaram a circular pelas redes sociais, no qual mostrava o cantor já morto após a queda do aeromotor, bem como seu corpo sendo levado na maca.
Tal fato já não é inédito. O corpo do cantor Cristiano Araújo, que também veio a falecer em virtude de um acidente automobilístico no ano de 2015, foi divulgada pela internet totalmente despido de suas veste, em pleno IML. Esses dois casos só são pequenos exemplos das maléficas consequências trazidas pela tecnologia para a sociedade.
Sempre que, em público, alguma tragédia acontece, fotos e vídeos são logo produzidos e divulgados, quer as vítimas sobrevivam, quer venha a morrer. As pessoas que realizam tal conduta não tem a sensibilidade de se colocar no lugar daquele que sofreu a catástrofe ou no lugar de seus familiares. E mais, qualquer um pode ser vítima destas filmagens, sejam ricas ou pobre, famosas ou não. Aconteceu um acidente, pode ficar certo que alguém já está filmando ou fotografando.
Após veem as fotos ou os vídeos produzidos por terceiros, sem qualquer compaixão, a dor das vítimas dessas catástrofes são elevada exponencialmente. Tal dor também se aplica aos familiares daqueles que perderam algum ente querido e, até mesmo sem sua vontade, se deparam com a circulação pelas redes sociais de tal tragédia.
Até nós mesmo, vez ou outra, somos surpreendidos com filmagens compartilhadas pelas redes sociais (via de regra pelo aplicativo WhatsApp) de pessoas se acidentando, estando muito feridas ou até já mortas.
Quem grava ou realiza fotografias de pessoas após alguma tragédia não traz consigo algum tipo de humanidade. Não se importam com o sofrimento alheio daqueles que irão ser atingido por esse fato.
Estas pessoas, talvez por não terem nenhuma representatividade em vida, por não somarem nem diminuírem em nada, por não terem algum grau de importância em alguma coisa, filmam, fotografam e compartilham desgraças alheias como forma de ganharem aquilo que lhes mais faltam: atenção. Tais pessoas veem a oportunidade de ter voltadas para si os olhos da sociedade e para isso devem compartilhas o sofrimento humano, não hesitando em fazê-lo.
Que há responsabilizações cíveis para tais pessoas, isto é evidente, haja vista o dano causado a vítima de tragédias ou aos seus familiares. Porém surge a questão: há responsabilização penal para estes casos?
Antes de mais nada, é importante mencionar que o art. 212 do Código Penal tipifica o crime de Vilipêndio de Cadáver. Nele, a pessoa que que vilipendia um cadáver ou suas cinzas pratica o crime em questão. Na lição do professor Rogério Sanches (2016, p.455):
A ação nuclear típica é vilipendiar (desprezar, desdenhar, aviltar, menoscabar, rebaixar o cadáver ou suas cinzas. É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela oposição de máscara ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem deveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas.
Nesta toada, fica claro que para a existência do crime mencionado deve haver o dolo de ultrajar/aviltar o cadáver ou suas cinzas, ou seja, é imprescindível a presença do desejo em desprezar o corpo falecido; sem esta vontade, o fato se torna atípico para o art. em questão.
Fazendo uma relação do crime de vilipêndio de cadáver com a conduta daqueles que realizam fotografias ou filmagens de tragédias alheias, deve-se analisar o “conatus” do agente. Se ele realmente agiu na intensão de menosprezar o cadáver, incorrerá no crime do art. 212 do Código Penal; porém caso sua intenção seja meramente informativa, ou seja, “comunicar” para a sociedade, por meio das mídias sócias (voltamos a referida “atenção” exposta mais acima), este fato não tem como se subsumir ao crime de vilipêndio de cadáver.
Na prática, comprovar a intenção do agente em querer escarnar o cadáver com as filmagens e fotografias realizadas é algo bastante difícil. Além do que, mesmo que isto ocorra, tal crime não poderá ser imputado caso a vítima da tragédia consiga sobreviver.
Uma lacuna legal se forma no Código Penal, haja vista que a analogia é terminantemente proibida neste ramo, salvo se para beneficiar o agente.
Projetos de lei 79/18 e 1614/19
Visando a combater a impunidade daqueles que praticam filmagens de tragédias alheias, tramita-se no Congresso Nacional o projeto de lei n° 79/18, do senador Ciro Nogueira (PP-PI).
Tal Projeto de Lei visa a criminalizar a conduta daquele que divulga imagens de acidentes envolvendo vítimas não fatais. Nele, haverá uma alteração do artigo 140 do Código Penal, estabelecendo prisão de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos para quem realizar a referida conduta.
A PL vem para suprir de vez a lacuna legal constante no crime de vilipêndio de cadáver, ou, até mesmo, por fim a dúvida se subsumiria ou não a conduta neste artigo. Assim, julgadores não teriam mais dúvidas para decifrar a vontade do agente quando realizarem tais condutas, fortalecendo, portanto, a segurança jurídica e dando fim a lacuna legal existente.
Já o Projeto de Lei 1614/19, do Deputado Federal João Daniel (PT/SE), visa aumentar a pena do crime de omissão de socorro, artigo 135 do Código Penal, para aquele que, ao invés de prestar o socorro às vítimas de algum acidente, preferem filmar ou fotografar.
O Projeto de Lei surgiu motivado pelo trágico acidente sofrido pelo jornalista Ricardo Boechat, após queda do helicóptero que o transportava, vindo também a falecer, no qual as pessoas que presenciaram a cena, ao invés de prestar o socorro devido, pegaram seus celulares para realizar filmagens e fotografias.
Com a PL, a redação do art. 135 do Código Penal seria a seguinte:
Art. 135. […]
§1° – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave.
§2º – A pena é aumentada em dois terços se o agente preferiu registrar por meio de fotografia ou filmagem o acidente ou desastre em vez de prestar socorro à vítima.
§3° – A pena é triplicada, se resulta a morte.
Conclusões
Por tudo que foi exposto, resta claro que, quando presenciarmos tragédias envolvendo pessoas, nossa atitude deve ser de ajuda-las, e não de realizar fotografias ou filmagens para disseminação nas redes sociais.
Coloquemo-nos no lugar das vítimas e familiares que passaram por esta situação e façamos um reexame de consciência de que nós, hoje ou amanhã, podemos passar por tais momentos, haja vista a imprevisibilidade da vida.
No que concerne a dúvida gerada no crime de vilipêndio de cadáver, com a consequente existência da lacuna legal, está mais do que na hora de se ter uma lei penal tratando da matéria ora debatida, pois, as pessoas que realizam condutas assim, devem responder criminalmente pelas mesmas.
O Direito Penal é conhecido como a ultima ratio. Deste modo, a atitude daqueles que filmam e fotografam catástrofes alheias não podem tão somente ter reflexos cíveis, devendo a responsabilidade penal ser abarcada (havendo lei para tanto), haja vista que estas condutas já preenchem os pressupostos e requisitos a serem observados para ser tratadas em matéria penal.
REFERÊNCIAS
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 8. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?